André Botelho
Pequeno estudo para sobrevivência pagã no barroco
Em memória de Maria Helena Coelho.
Caberia começar por Minas Gerais, por certo. Os Atlantes do Aleijadinho da Igreja da Ordem Terceira do Carmo de Sabará? Trago outros mundos. Parte de outro roteiro barroco, mundo vasto mundo. Do Recôncavo baiano à Costa do Malabar indiana, passando pelo Rio de Janeiro e pela doce Paraíba.
Primeiro, a papeleira indo-portuguesa cujos pés me pareceram “sereias indianas” – já que traziam caudas de peixes e o “bindi” – o ponto sagrado utilizado nas testas por mulheres indianas. Anos depois, casualmente, percebi figuras semelhantes esculpidas em madeira nos altares de templos católicos espalhados pelo Nordeste. Na minha cidade, com espanto, identifiquei as mesmas figuras. Na igreja de Santa Rita, na esquina da Rua Miguel Couto, ela aparece desenhada no mosaico de mármores que guarnece o lavabo da sacristia – para onde cariocas de outros tempos acorriam buscando curas milagrosas que as suas águas vertiam.
E os exemplos foram se multiplicando, mas, a partir daí, não mais casualmente, já que munido da câmera de celular passei a perseguir indícios e recorrências em templos católicos dentro e fora do Brasil. No Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa descobri seu nome: nagina. Figuras secundárias do panteão pagão hindu que habitam as águas e se relacionam com os deuses, nomeadamente Vishnu – o deus maior do hinduísmo.
Brasil e Índia foram partes de um mesmo império lusitano e os muitos sincretismos culturais operados pelos portugueses pareciam suficientes para explicar a recorrência aqui e lá dessas espécies de guardiãs de templos, com historiadores da arte apontando inclusive certa domesticação, com a cauda da serpente adquirindo a aparência mais familiar europeia da cauda de peixe/sereia entre os católicos. Todavia, quando por lá os portugueses chegaram, com seu cristianismo latino paulino, a cultura hindu já estava assentada no substrato religioso dos Cristãos de São Tomé, grupo etnorreligioso da Costa do Malabar, cujas origens remontariam também aos primórdios do cristianismo – eles são assim autonomeados por terem sido, segundo a tradição, evangelizados pessoalmente pelo apóstolo São Tomé no ano de 52.
Meu exercício warburguiano para o AtlasmnemosyneMinasMundo busca, assim, trazer sobrevivências imagéticas num jogo de recorrências, reminiscências, deslocamentos. Como sugere Aby Warburg em relação ao que o artista renascentista talvez buscasse na antiguidade pagã, desconfio que, também no caso das naginas, não se trata exatamente de “representar” serenidade e harmonia, mas antes de “exprimir” dor e movimento. Pathosformeln (“fórmulas de páthos”), padrões gestuais e simbólicos que dariam forma às experiências cruciais vividas nas mais diferentes épocas – e lugares.
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Extrapolo. Pensando em naginas que habitam as águas, e no Rio de Janeiro são guardiãs de uma fonte barroca de águas milagrosas, lembro a “santa sem um dos pés” do romance O outro pé da sereia, de Mia Couto. A imagem encontrada na beira de um rio liga o passado e o presente de Moçambique: ela é a mesma que viajou, em 1560, com o jesuíta Gonçalo da Silveira, ao partir de Goa, do outro lado do Índico, para converter ao cristianismo o imperador do Reino do Ouro, ou Monomotapa. Nossa Senhora para os portugueses, a imagem era chamada de Kianda, uma divindade das águas, pelos escravos da nau; os africanos a tratariam por Nzuzu, rainha das águas doces. Claro, poderia chegar à sereia em Grande Sertão: Veredas, mas, não o farei. A voluta é uma espiral, não um círculo.