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“Sou do mundo, sou Minas Gerais”: Milton Nascimento e os baianos

Maurício Hoelz

“Sou do mundo, sou Minas Gerais”: Milton Nascimento e os baianos

“Sou do mundo, sou Minas Gerais”. O verso, retirado do LP Milton de 1970, parece condensar o tema do projeto Minas Mundo, ao sugerir que tanto a pertinência ao universal se realiza pela afirmação da diferença, quanto, nesse caso em particular (com o perdão do jogo de palavras), o próprio particular (Minas) contém o geral, ou os Gerais (mundo). Ora, evocando palavras clássicas de Antonio Candido, não é essa “dialética rarefeita” entre localismo e cosmopolitismo que define a dinâmica específica da experiência cultural em países coloniais como o Brasil? A propósito, quão simbólico (ou sintomático, dependendo da chave de leitura) não é o título da canção, “Para Lennon e McCartney”? Uma dedicatória aos dois principais ícones e ídolos de um dos maiores fenômenos – então no seu auge – da história da cultura pop mundial (que, naquele mesmo ano, chegaria ao fim). Lembro, aliás, que versos anteriores da mesma música cantam “Eu sou da América do Sul/Eu sei, vocês não vão saber”, vocalizando a “assimetria de ignorância” – a desigualdade e a invisibilidade – que marca a hierarquia de discursos na geopolítica internacional e, logo, a dependência cultural do Sul global, como se diria hoje – esse lugar de fala em que os autores da música fizeram questão de se situar.

A partir desse tema, pretendo estudar a trajetória e a obra de Milton Nascimento como uma possível figuração do cosmopolitismo mineiro na cultura brasileira, contrastando-a ao que me parece constituir um outro tipo de cosmopolitismo, cujos vetores (e avatares) são os tropicalistas baianos, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Cada um a seu modo, esses três artistas incorporaram na linguagem musical elementos do que havia de mais moderno em circulação pelas metrópoles do mundo filtrados à luz das tradições e inovações locais, produzindo uma estética cosmopolita que ganha expressão “formal” no repertório sonoro; nas letras e títulos das canções; nas capas de discos; nas parcerias, regravações e turnês internacionais; nas performances no palco e na concepção dos espetáculos.

Para dar apenas o exemplo do mineiro, Milton combina e experimenta com, entre outros elementos, o jazz norte-americano, o samba-jazz, o rock, a bossa nova, os cantos de trabalho dos negros escravizados, a música ritual dos índios, a herança da arte religiosa barroca e da música sacra das cidades coloniais de Minas, os corais do hinário cristão, os cânticos católicos e os ritmos folclóricos das festas populares, o cancioneiro da América Hispânica e a nueva trova. Saído de uma província do interior de uma ex-colônia tropical localizada na periferia do Ocidente, o mineiro realiza a “travessia” do mar “de dentro” de Minas rumo à terra prometida da celebridade internacional e se proclama “cidadão do mundo”.

A hipótese preliminar que eu estou construindo encontra uma pista no episódio polêmico – a ser rastreado em materiais da época – em que os baianos teriam afirmado que os negros e os “tambores de Minas” (nome de espetáculo de Milton de 1997) foram domesticados pela Igreja Católica. Prepondera aí uma preocupação com as supostas raízes autênticas da cultura e com a identidade (e a unidade, ainda que uma “geleia geral”, no título da canção de Gil) dela. Isso implica um tipo de cosmopolitismo autocentrado nas experiências híbridas de “origem” e que opera como uma espécie de atualização (de acerto dos ponteiros do relógio) e de compatibilização da cultura autóctone singular com o moderno (representado pelos países centrais), por meio da importação das inovações internacionais. Basta lembrarmos da junção do ponto de macumba com a guitarra elétrica na música dos tropicalistas. Trata-se, portanto, de um cosmopolitismo mais voltado para dentro, cujo sentido é afirmar a originalidade da diferença, ao passo que o mineiro, a meu ver mais centrífugo, estaria mais voltado para fora e para a universalidade diferencial, vamos dizer. Nessa visão o cosmopolita não é o polo oposto ao local (ao provinciano) – não há aqui “sentimento dos contrários” (para retomar a expressão do mesmo Antonio Candido). E sim um tipo de relação descentrada de convivência com o universal e as multiplicidades a partir das diferenças, que implica movimento e abertura em várias direções. Raízes da Bahia, rizomas de Minas.

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