Pedro Meira Monteiro
O prosseguir em Minas: encontro no desencontro
Como se vê o mundo a partir de Minas Gerais? Como o elabora o estrangeiro e o local? Como o sente quem vê de baixo, e quem olha de cima? Como o longínquo se faz próximo, no desencontro dos lugares sociais? Quem fala de dentro, quem de fora?
De um lado, Elizabeth Bishop, cuja imaginação poética tardia é marcada pelas montanhas de Minas, às quais ela transfere o que vivera em Petrópolis, onde viu, como poucos de seu meio, a iniquidade da formação social brasileira. Os comentários racistas e reacionários complicam a imagem dessa mulher que se apaixonou pela prosa de Clarice Lispector, e cujo poema “Manuelzinho” pode ser lido como a contrafação poética da crônica “Mineirinho”: ambos personagens agonizantes, vistos por mulheres brancas e estrangeiras movidas pelo susto diante do abismo das classes sociais. Há também a relação com Helena Morley, a “leading girl of Diamantina” que Bishop traduziu, e cujo encontro mereceu uma descrição que transforma o Rio de Janeiro num espelho do Deep South.
De outro lado, Conceição Evaristo, para quem o aguilhão da condição social é também motor, mas em ordem inversa: de baixo para cima, de dentro para fora, de uma classe a outra. Em batalha surda contra o esquecimento da ancestralidade, ela povoa o universo com personagens mágicas, ancoradas na memória que se expande pelo domínio da letra, que mal oculta a violência histórica da escravidão, como no caso de Ponciá Vicêncio. Ou então, em “Inquisição”, sente-se interrogada pelo Outro que “nega o negrume/ do meu corpo-letra/ na semântica/ da minha escrita”. Mas o eu-lírico insiste: “Prossigo e persigo/ outras falas,/ aquelas ainda úmidas,/ vozes afogadas,/ da viagem negreira.” O prosseguir engloba, no Minas Mundo de Conceição, um poema em que Clarice é levada até Carolina, “a que na cópia das palavras,/ faz de si a própria inventiva”. Em outro poema, que serve de espelho àquele, Carolina percorre cada canto da obra clariciana, “com os olhos fundos,/ macabeando todas as dores do mundo…”
O encontro improvável de Bishop e Conceição (mediado pela presença oblíqua de Clarice) se dá no ponto tenso em que as contradições da sociedade se tornam mais agudas, seja na clave estetizante, ou sentida na própria pele. No caso de Conceição Evaristo, uma constelação se arma, sugerindo uma linhagem de escritoras que se estende, para fora e para cima, a partir de Minas Gerais.