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Memória

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André Botelho

Onde mora o modernismo? A caderneta de endereços de Ronald de Carvalho

Vicente do Rego Monteiro, Retrato de Ronald de Carvalho, 1921, óleo sobre tela, Coleção Gilberto Chateaubriand – MAM/RJ

Foto do poeta e dramaturgo simbolista Maurice Maeterlinck (Nobel de literatura, 1911) colada na contracapa da caderneta.

O poeta, ensaísta e diplomata carioca Ronald de Carvalho (1893-1935) é um emblemático modernista brasileiro do Rio de Janeiro. O jogo entre local e nacional não é, em seu caso, casual. Como tampouco o é o jogo entre o nacional e o cosmopolita, o local e o universal num autor que, inclusive por profissão, atuou nas mediações culturais e políticas entre o Brasil e o mundo. E, quando foi necessário, entre o Rio de Janeiro e São Paulo.

Foi na casa de Ronald, na Rua Humaitá, no bairro carioca de Botafogo, que se tramou a adesão dos artistas e intelectuais estabelecidos na então Capital Federal à Semana de Arte Moderna realizada em São Paulo em 1922. E essa articulação foi crucial para dar à Semana não apenas mais densidade artística, como uma repercussão menos localista e um sentido mais abrangente, nacional e cosmopolita, do que se reunisse apenas a turma paulista. Foi ainda na casa de Ronald, em 1921, que Mário de Andrade conheceu Manuel Bandeira, com quem teria longeva amizade e uma das mais impressionantes relações epistolares da cultura brasileira e da língua portuguesa.

Anotações diversas e lista de palavras.

Nas suas credenciais para essa participação destacada nos anos 1920, contava, e muito, o fato de Ronald ter participado também do modernismo português em torno da revista Orpheu, em 1914-15, com jovens simbolistas portugueses como Raul Leal, Mário de Sá Carneiro, José de Almada Negreiros, Luís de Montalvor e Fernando Pessoa, sendo considerado por este último “um dos mais interessantes e nossos dos poetas brasileiros de hoje”.

Endereços de Mário de Andrade e de Guilherme de Almeida, além de anotações pessoais.

Em 1998 fiz contato com o Sr. Arthur Ronald de Carvalho, filho de Ronald. Fui muito bem recebido por ele e sua esposa, D. Myriam, em seu apartamento na Rua Voluntários da Pátria, no mesmo bairro paterno de Botafogo. Em uma das visitas, a terceira ou a quarta que fiz ao casal, recebi deles, como um presente pessoal, a caderneta de endereços, junto com outros dois cadernos de recortes e anotações. Arthur contou-me que, como seu pai falecera como Chefe da Casa Civil de Vargas, parte da biblioteca e do arquivo de documentos fora retirada da sua residência numa operação semioficial por agentes do Estado por se entender que poderiam conter materiais oficiais, de natureza sigilosa e circulação restrita. Ronald morrera repentinamente em decorrência de um acidente de automóvel em fevereiro de 1935.

Endereço de Manuel Bandeira.

Então, a caderneta de endereços sobre a qual estamos trabalhando nesta ação conjunta do Suplemento Pernambuco com o Projeto MinasMundo (embora eu já tenha feito citações dela em minha tese de doutorado Um ceticismo interessado: Ronald de Carvalho e sua obra dos anos 20, defendida em 2002, e noutras publicações posteriores) é, num certo sentido, uma sobrevivente dessa operação de sequestro. Talvez, tenha escapado por ser pessoal demais, mas, sobretudo, por ser de um período anterior, da juventude modernista cosmopolita de Ronald de Carvalho.

A caderneta nos fascina como um documento único em seu gênero, com anotações pessoais – como listas de palavras, citações, esboços de poemas etc. – e endereços que fazem dela um verdadeiro “quem é quem” do modernismo brasileiro. Seu período de uso pode ser apenas estimado. Na primeira página da letra A encontramos uma anotação com identificação de data, 1914, quando então Ronald tinha 21 anos de idade: “Escrevi ao Crès relembrando meus livros no dia 2 de fevereiro de MCMIV, assim, como fazendo a proposta do livro do Homero ‘Au jardin de la Beauté’”. A primeira informação do trecho, provavelmente, se refere à Casa Crés Et Cie., estabelecida em Paris, que no ano anterior editara o livro de estreia de poesias de Ronald, Luz Gloriosa. O que nos sugere que a caderneta foi usada pelo menos a partir de 1914.

Até quando a caderneta foi utilizada é muito mais difícil de saber. Mas também temos indicações. Por exemplo, na entrada “Bandeira (Manuel)”, aparece riscado o endereço do poeta na Rua do Curvelo, 43 (hoje Dias de Barros, no bairro carioca de Santa Teresa) Ao seu lado, um novo número de telefone. Sabemos que Bandeira morou na Rua do Curvelo por 13 anos a partir de 1920. Não sabemos o motivo pelo qual Ronald riscou o endereço de Bandeira; teria ele usado a caderneta depois de 1930? Muito improvável.

Endereço de Oswald de Andrade, em Paris, e de Olegário Mariano, no Rio.

Outros exemplos: na entrada “Andrade (Mário)”, consta o endereço Rua Lopes Chaves, 108, onde sabemos que Mário viveu a partir de 1921. Então, temos a indicação de mais um ano de uso da caderneta. “Freyre (Gilberto)” aparece com indicação do número 199 do cais do Imperador, Recife, onde Freyre terá vivido no máximo até 1930, quando acompanhou para o exílio em Portugal o então presidente de Pernambuco, deposto pela Revolução de 1930, Estácio Coimbra, de quem era secretário particular.. Sabemos que, antes disso, Freyre morava com o irmão Ulysses na casa do Carrapicho, localizada na Rua do Encanamento, onde escreveu Casa-grande & Senzala, publicado em 1933. Mais interessante é a indicação, logo abaixo do nome de Gilberto Freyre, do de Oliveira Lima, em Washington, onde veio a falecer como embaixador brasileiro em 1928.

Uma caderneta de endereços, convenhamos, entre muitas outras funções esperadas, guarda justamente os destinatários da correspondência que foi uma das principais formas de ação comunicativa entre os modernistas e deles com a sociedade brasileira. Um arquivo modernista, portanto. Como discuti recentemente no livro que escrevi com Maurício Hoelz, O modernismo como movimento cultural (Vozes, 2022), a mudança cultural que o modernismo objetiva operar na sociedade implica uma transformação nos próprios atores sociais que dele participam. Forja-se, assim, uma espécie de self modernista. Este, porém, não se completa em si mesmo, não constitui uma identidade fechada nem sequer estável. Antes, se repõe, a cada geração, na espiral formada pela relação sempre muito contingente entre a mudança pretendida pelo movimento e a sua modificação no processo. O modernismo é um tipo de movimento que enlaça gerações. Então, são muitos os seus lugares. Mas ele mora, sobretudo, no tempo da longa duração. Hoje, no centenário da Semana de Arte Moderna, com a participação da nossa ação Modernismo rede social, ele se recoloca no Facebook, Twitter, WhatsApp e Instagram e outras práticas comunicativas cotidianas, disputando ainda os significados da cultura brasileira – que não é apenas o espaço do consenso, mas do conflito.

Endereço de Gilberto Freyre, no Recife, ligado ao de Oliveira Lima, em Washington. Destaque também para Jackson de Figueiredo.

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