Maurício Ayer
Guimarães Rosa, a cachaça e os labirintos da língua-fera
A cachaça está presente em todo o território brasileiro e se reconhece como um elemento de unidade cultural do país. Também se espalha pela obra de João Guimarães Rosa, a começar pelos contos de Sagarana. Ali, no Corpo de Baile e no Grande Sertão: Veredas, participa como um ingrediente na hospitalidade dos vaqueiros e demais sertanejos do Norte de Minas Gerais. Há pistas que ajudam a conhecer o papel da cidade de Januária, centro de uma tradição cachaceira peculiar que se irradia em vasta região. Uma de suas características, o uso da umburana no envelhecimento da aguardente, influencia hoje a cachaça de todo o Brasil e mesmo outras bebidas, como a cerveja, mundo afora. Guimarães Rosa documenta essa tradição desde os anos 1930, época em que escreveu seus primeiros relatos.
Mas a cachaça é também eixo que faz rodar um espectro simbólico de raio mais amplo. Por um lado, atualiza a tradição alquímica da aguardente – aqua ardens, que se modaliza em aqua vitae e quintessentia – e da destilação do processo fundamental na produção da Obra – uma das interpretações possíveis para a “hora e vez” de Augusto Matraga, para citar apenas um exemplo. Dialoga, portanto, com a tradição helenística e neoplatônica, tão presente na obra do autor mineiro. Mas Guimarães Rosa também situa a cachaça no centro de um embate que é fundador do chamado processo civilizatório brasileiro. Em “Meu tio, o Iauaretê”, publicada no livro póstumo Estas Estórias, a cachaça é a “abrideira” do labirinto da linguagem, território em que as personagens são suscetíveis a revelações e metamorfoses. Recoloca-se a discussão sobre o papel da cachaça como elemento introduzido na cena da dominação pelo apropriador da terra. Minas é aqui o lugar de uma fronteira sempre recolocada, no sertão e na alma (ou na linguagem) do caboclo, entre o onceiro e a onça, ou entre a aliança precária que faz do caboclo um onceiro e o sistemático sacrifício que o reincorpora como parente da onça.