Enio Passiani
Um mundo à deriva: a história e a memória das classes médias brasileiras na literatura de Luiz Ruffato
Tratar das classes sociais, principalmente a partir da perspectiva das classes médias baixas, não é novidade em relação à literatura de Ruffato, uma vez que o tema já foi apontado por vários críticos e assumido pelo próprio autor em artigos de jornal e entrevistas como uma espécie de coluna que sustenta todo o seu projeto intelectual. O centro de suas preocupações é o homem comum e trabalhador, aspecto pouco comum em nossa história literária, frequente e majoritariamente composta por autores/as das classes médias mais abastadas que se dirigem a essas mesmas classes.
Nascido em Cataguases, MG, ele próprio oriundo das classes médias baixas, filho de um pipoqueiro e de uma lavadeira de roupas, Ruffato foi operário da indústria têxtil, pipoqueiro como o pai e atendente de armarinho na juventude. Ao fazer ficção de “baixo para cima”, opera um duplo movimento, que é um duplo questionamento: coloca em xeque a ideia de nação em nosso país, assim como a própria literatura brasileira, que silenciou a respeito de tal estrato social.
Desde sua pentalogia, Inferno provisório, até o seu último romance, Verão tardio, Ruffato debruça-se sobre uma camada social que, historicamente, vem se desintegrando, esmaecendo a ponto de tornar-se uma espécie de imagem fantasmática sem corpo e que se esforça, quase sempre sem sucesso, para se recompor e voltar a existir. Em sua pentalogia, as personagens, entre familiares e vizinhos, abandonam Cataguases para tentar a vida noutras cidades, como Juiz de Fora, Rio de Janeiro e São Paulo. Em Verão tardio deparamo-nos com o movimento de retorno da personagem principal para a mesma Cataguases, num reencontro absolutamente desastroso com sua família.
Espremidas entre as condições materiais de vida quase sempre precárias, exploradas por relações de trabalho profundamente desiguais, sonhos e ambições destruídos e relações familiares catastróficas, as personagens frequentemente rememoram o passado, conversam consigo mesmas na esperança de tentar encontrar e compreender o momento em que tudo começou a desandar. O passado irrompe no presente a todo momento, ora como tentativa de reviver o momento em que as esperanças em relação ao futuro ainda eram vivas e vibrantes, ora como âncora que arrasta e congela o presente no pretérito, impedindo o tempo de avançar.
É desde Cataguases que Ruffato procura problematizar a história e o destino das camadas médias baixas brasileiras, apresentando-se como uma das expressões literárias mais bem acabadas dos “de baixo”, de tal sorte que a literatura de Ruffato preenche um vazio que afeta tanto a literatura nacional quanto o pensamento social brasileiro, que ainda apresenta parca produção a respeito das nossas classes médias. Sua literatura, sem dúvida, ajuda a pensar e problematizar o Brasil.