Maria Angélica Melendi
Uma arte da rasura: apagamentos, reescritas e aparições na arte brasileira atual
No projeto Cara de Índio (2011) – realizado durante sua viagem entre os extremos sul e norte da América –, o artista Paulo Nazareth se propõe a identificar índios urbanos e se fotografar ao lado de outros homens e mulheres com cara de índio para que se possa estabelecer uma comparação entre os rostos de ambos.. O projeto se materializa em uma série de flyers impressos em papel de jornal e faz parte de outro mais abrangente intitulado Notícias de América (que pode ser apreciado no blog http://artecontemporanealtda.blogspot.com/, na seção homônima). No texto do flyer, meramente informativo, aparece uma afirmação inesperada: o artista evoca o mestiço: “comparar a cara mestiça à cara do outro”. Mas quem é o mestiço? Quem é o outro? O índio urbano? Paulo?
Os índios urbanos seriam aqueles indivíduos desarraigados da tribo, seja porque se afastaram dela, seja porque ela já não existe. Em todas as populações da América Latina existem índios urbanos, na sua maior parte descendentes de grupos extintos e de brancos. Muitos deles perderam não somente a língua natal, mas também a religião e as formas de sociabilidade.
No Brasil, não costumamos reconhecer essa mestiçagem, cegados pela evangelização e pelo processo de branqueamento impulsionado durante vários séculos. Ao reconhecer essa mestiçagem, Paulo Nazareth está se debruçando sobre um dos múltiplos passados inexplorados ou esquecidos da nação.
Paulo Nazareth, que nasceu em Governador Valadares, interior de Minas Gerais, e viveu sempre na periferia, é um artista de notável projeção no sistema da arte ocidental. Em Nova York Miami, Lyon ou Veneza, ele mostra suas obras singelas e grandiosas, feitas de carne de porco salgada, banha, carvão, polvilho e sal. Exibe seus papéis de jornal impressos em tipografia, nos quais narra com imagens e palavras as histórias que foram apagadas e que agora aparecem reescritas: as histórias roubadas da alma do Brasil. Uma “ação de retaguarda” (rearguard action) como queria, em 1987, o artista Peter Halley. Uma ação através da qual se realimenta a cultura com seus próprios restos, com aquilo que foi descartado na hora de determinar o que tem valor.