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Cecília Meireles e a transfiguração da Inconfidência

Sérgio Alcides

Cecília Meireles e a transfiguração da Inconfidência

A atualidade do Romanceiro da Inconfidência chega a ser perturbadora: “Onde a fonte do ouro corre, / apodrece a flor da Lei”.

Cecília Meireles não foi a Minas Gerais em busca de origens da nacionalidade. Para ela, a visão do passado colonial mineiro inspirou antes uma reflexão sobre a frustração dos melhores ideais humanos e sua inevitável recorrência, no fluir da temporalidade que os engole. “Na mesma cova do tempo / cai o castigo e o perdão”, escreve ela. É verdade, mas “homens novos, multiplicados / de hereditárias, mudas revoltas, / bradam a todas as potências”. Isso assegura a permanência da poesia.

Os episódios da Inconfidência Mineira são – nesse livro de 1953 – o motivo da poesia: seu tema, não seu assunto. Este apenas parte das figuras desenhadas com base em pesquisa documental, os “Autos da devassa” e outros documentos históricos, mais o tesouro das tradições orais. O trabalho poético transfigura essas fontes, com as quais se impregna da experiência passada. E delas se solta, como a mão do herói que acena: “vaga forma, do tempo desprendida”.

O Romanceiro é por isso irredutível à história do Brasil. Prende-se à nacionalidade brasileira tanto quanto a Ilíada à grega ou a Divina comédia à italiana – ou seja: não de todo. Para esse livro, a controvérsia historiográfica sobre a Inconfidência importa pouco. O público não procura seus poemas a fim de verificar se correspondem ou não a supostos fatos históricos. Vai ali para contemplar como “amor, inveja, / ódio, inocência, / no imenso tempo / se estão lavando”.

A pesquisa e a composição da obra levaram dez anos. No meio tempo, Cecília manteve sua presença constante na imprensa, como cronista, e traduziu um punhado de autores cruciais para ela, como García Lorca, Virginia Woolf, Rilke e Tagore. As estadas em Ouro Preto e Belo Horizonte foram entremeadas por viagens à Europa, às vezes em missões de representação oficial. Em 1952, Cecília voltou ao Brasil trazendo seus Doze poemas da Holanda. E no ano seguinte, quando o Romanceiro chegava às livrarias, estava em congresso internacional na Índia. Até o fim da década, ainda visitaria Israel e os Estados Unidos, e retornaria à Europa um par de vezes.

O mergulho no passado convergia com tantas viagens a pontos fulcrais da contemporaneidade, a Leste e a Oeste, seja no velho continente, seja no mundo pós-colonial. A tarefa deste projeto é situar o Romanceiro nesse itinerário.

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