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Jequitibá, Brejinho, Beco do Repolho, Lagoa Trindade, Matuto, Cordisburgo, Calabouço, Povoado do Souza e Serra do Cipó: O mundo sem capital e a oralidade que produz sem capitalizar

Sérgio Bairon

Jequitibá, Brejinho, Beco do Repolho, Lagoa Trindade, Matuto, Cordisburgo, Calabouço, Povoado do Souza e Serra do Cipó: O mundo sem capital e a oralidade que produz sem capitalizar

O princípio de transferência da capital de Minas Gerais de Ouro Preto para outra localidade circulava pelo Brasil Colônia desde a época da Conjuração Mineira de 1789. Somente em 1867, no entanto, o deputado Padre Agostinho de Souza Paraíso apresentou na Assembleia Legislativa Provincial (MG) um projeto (que foi aprovado) que transferia a capital de Ouro Preto para a cidade de Jequitibá. Seu argumento central estava baseado na importância econômica e de mobilidade do Rio das Velhas que banhava toda região, sendo o principal afluente do Rio São Francisco. O projeto, porém, não se efetivou em função da reação contrária ouro-pretana e acabou contando com o veto do Presidente da Província. O resultado foi que grande parte da região em torno do Rio das Velhas, por um lado, acabou ficando isolada do desenvolvimento econômico e urbano contemporâneos. Por outro lado, quiçá justamente por isso, preservou e expandiu muitas formas de vida do saber oral. Quase 150 anos após a apresentação do projeto do Deputado Padre Paraíso, encontramos na região, vivas e latentes, as seguintes manifestações culturais: Grupo de Rezadeiras, Incelência de Chuva, Boi da Manta, Catopé, Folia do Divino, Folia de São Sebastião, Folia de São Geraldo, Batuque de Viola, Dança de Roda, Encomendação das Almas, Fim de Capina, Candombe, Moçambique, Caboclo, Marujos, Vilão e Guarda de Congo.

Esse universo de visões de mundo, ainda hoje fortemente presente na região, expressa um grande e dinâmico hibridismo cultural, fruto do encontro entre as culturas portuguesa e africana, que teve como resultado a formação de localidades culturais (de tradição oral) profundamente complexas em terras brasileiras.

Junto de comunidades dessa região, entre 2005 e 2011, tive a oportunidade de acompanhar e pesquisar inúmeros rituais (espirituais ou não), com ênfase no ritual Coroação de Reis Congo, cuja origem data do final do século XV, simbolizando o momento inaugural do encontro entre os portugueses e os africanos do Reino do Congo. Estar imerso nesse contexto geográfico significa compreender que esse mundo se revela, concomitantemente, como a origem reticular do encontro luso-afro-brasileiro e como fundamento que (re)inaugura o mundo, dinâmica e frequentemente, em transveredas da oralidade em que se produz cultura sem capitalizar. Esse mundo que se formou de maneira totalmente paralela aos sistemas econômicos sobreviveu, por um lado, por não ter se tornado a região da capital mineira e, por outro, porque em nada representa (ou representou) um valor de mercadoria.

Perguntar pela mundanidade desse mundo implica refletir o quanto ele pode ser compreendido a partir de uma rede de ontologias primordiais que, em grande parte, são imperceptíveis às teorizações das temáticas identitárias. Sobretudo, porque essas formas de vida híbridas carregam suas tradições incrustadas em raízes rizomáticas e familiares, cuja profundidade espraia-se geograficamente por toda região do Vale do Rio das Velhas, sua temporalidade podendo retroagir até o século XVI.

Esse mundo é trazido à tona, por exemplo, toda vez que um grupo de Guarda de Congo clama com seus tambores, sob o comando de seu Capitão, em homenagem ao seu Rei e a sua Rainha negros. Desvela-se assim aquele encontro da expedição portuguesa de 1483, quando Diogo Cão, a mando de João II de Portugal, chegou à foz do rio Zaire, inaugurando o universo simbólico do contato primordial entre os portugueses e os africanos do Reino do Congo.

Falar desse mundo, portanto, é falar de uma ontologia sempre grávida de um princípio cronotópico, no qual geografia e temporalidade se entrecruzam, tecendo uma rede infindável de associações culturais entre Portugal, Reino do Congo e Brasil. O mundo está nesse devir de um cronotopos definido primordialmente pelo saber oral. Uma historicidade umbilical terra-mundo, fruto da afeição presente no co-pertencimento entre Terra e Mundo. Só assim o mundo se mundifica, por exemplo, na Coroação de Reis Negros, que carrega séculos de oralidade nas inúmeras localidades mineiras e, ao mesmo tempo, numa obra como “O Recado do Morro” de Guimarães Rosa.

Defenderei o princípio de que essa compreensão clama por um aprofundamento por meio da vivência com essas culturas, tornando a experiência in loco a grande fonte de sentido. Fizemos mais de 10 filmes (contando com a interlocução de princípios da Antropologia Visual); várias comunidades do Moçambique, do Candombe e da Guarda de Congo foram grandes parceiros na produção e finalização desses registros audiovisuais. No entanto, não há (e não houve) conclusão a respeito de toda essa experiência. O que existiu (e existe) é a necessidade de demonstrar que é justamente a presença de uma experiência inacabada e inacabável com essa terra-mundo que possibilita a compreensão de seu fundamento cronotópico.

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