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Sertões mineiros e ciência-mundo: a doença de Chagas entre o local e o global

Simone Kropf

Sertões mineiros e ciência-mundo: a doença de Chagas entre o local e o global

Em 1909, o médico e pesquisador Carlos Chagas descreveu, num vilarejo à beira do rio das Velhas, uma nova enfermidade dos trópicos. O parasita que a causava (batizado por ele de Trypanosoma cruzi) era transmitido pelo inseto conhecido localmente como “barbeiro” ou “chupão”, por sugar o sangue dos moradores das miseráveis choupanas de pau-a-pique da região. A descoberta e os estudos sobre a tripanossomíase americana ou doença de Chagas se tornaram a vitrine do recém-criado Instituto de Manguinhos, que Oswaldo Cruz pretendia equiparar aos institutos de medicina tropical europeus, legitimando assim a identidade social dos cientistas que pretendiam conduzir a modernização republicana.

Era uma doença “mineira” em vários sentidos: pelo local de sua descoberta, pela naturalidade de seu descobridor, pelos enfermos que lhe davam carne e osso, pelas paisagens dos “sertões doentes” materializados nas cafuas. A nova tripanossomíase, que se pretendia “americana”, estendia-se, contudo, para muito além das gerais. No deslizamento discursivo pelo qual as “endemias dos sertões” se faziam a versão local das “doenças tropicais”, a enfermidade descoberta e estudada em Minas se tornou a “doença do Brasil” em sentidos diversos. Evocava a nação marcada pelo atraso e pela pobreza de seus sertões, mas também a nação que se inseria nas rotas dos saberes, pessoas, instrumentos e espécimes que marcavam a agenda nascente da medicina tropical europeia.

Nosso objetivo é refletir sobre como a doença de Chagas ganhou contornos como objeto médico e social mediante os circuitos entre distintas (e assimétricas) latitudes geográficas, culturais e sociais, a conectar Minas, Rio de Janeiro e Europa. No trânsito entre o local e o global, a doença dos sertões mineiros trouxe “glórias” para a ciência brasileira, mas também motivou resistências. Seus críticos, incomodados com sua caracterização como emblema de atraso e “degeneração”, afirmavam tratar-se não de um problema nacional ou americano, mas do “mal de Lassance”, restrito aos rincões mineiros, e que só faria estigmatizar o país no exterior. Trata-se, portanto, de pensar os sentidos polifônicos e contraditórios pelos quais Minas Gerais, espaço natural e social da “doença do Brasil”, projetou a nação em uma ciência-mundo que se desenhava entre muitas idas e vindas entre a Europa e os trópicos americanos.

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