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Viagem e etnografia em Mário de Andrade

Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

Viagem e etnografia em Mário de Andrade

Desde Argonautas do Pacífico Ocidental, de Bronislaw Malinowski (1922), a antropologia redefiniu o entendimento da etnografia, elegendo-o como novo ideal de produção do conhecimento ao longo do século XX. Combinaram-se então a pesquisa de campo de imersão com a construção de um estilo autoral individualizado que associa a apresentação dos dados de pesquisa ao apelo à imaginação do leitor. A autoconsciência mais plena das implicações dessa novidade emergiu, entretanto, apenas nos anos 1970, quando Clifford Geertz trouxe com clareza a escrita etnográfica e seus aspectos textuais e narrativos como partes decisivas da expressão e produção do conhecimento antropológico. Um significativo conjunto de autores, entre eles James Clifford com a discussão da autoridade etnográfica, desdobraria nos anos 1980 o assunto. Com isso, sem abrir mão da objetividade – a ideia de um mundo real a ser conhecido –, aceitou-se a subjetividade e a intersubjetividade como mediadores essenciais do processo da pesquisa.

O escopo semântico da noção de etnografia – que integra escopo teórico, pesquisa de campo, análise de dados a seu resultado escrito – tornou-se multifacetado, pois remete ao mesmo tempo à autenticidade da experiência vivida, às exigências de apresentação fidedigna de dados, à imaginação do leitor e à construção do estilo autoral. Isso tornou a prática antropológica a um só tempo um ofício especializado (supõe a cientificidade de métodos e teorias) e uma arte narrativa sempre associada de algum modo à experiência da viagem como dispositivo de descentramento do sujeito e apreensão de alteridades. Esses significativos deslocamentos metodológicos e epistemológicos trazidos por essa acepção ampla da etnografia nos aproximam com novos olhos do passado e permitem, quando o arsenal crítico pós-moderno é usado construtivamente, renovar o interesse por autores clássicos em que a liberdade narrativa se associa ao desejo de produção de conhecimento.

Trago a conversa para o solo brasileiro, situando-a entre os anos 1920-1940, quando as próprias ciências sociais universitárias se encontravam em processo de institucionalização. Nesse contexto, levando em conta o grande bricoleur e artista que foi Mário de Andrade (1893-1945), a proposta enfoca em sua obra textos que iluminam formas diversas da experiência e do entendimento da etnografia sempre associadas a diferentes modalidades e projetos de viagem.

Penso especialmente em dois textos exemplares do interesse de Mário de Andrade em registrar e conhecer o folclore brasileiro: “Música de feitiçaria” (a conferência de 1932) e “O samba rural paulista” (1937). Tais textos indicam com clareza a transição do autor entre os contextos intelectuais pré-modernista e o modernista, adotando aqui os termos utilizados por Marylin Strathern, ao referir-se aos deslocamentos sofridos pelo entendimento antropológico da etnografia. A alteridade buscada e narrada apresenta-se aqui como diferença interna encontrada no povo que não só provê fontes de originalidade criativa como liga a cultura brasileira contemporânea ao autor a dimensões universais. Em discussão com a ampla fortuna crítica do autor, venho elaborando o assunto abordado em textos publicados ao longo dos anos e pertinentes à proposta em pauta.

Penso também em textos em que a alteridade é buscada no desejo de conhecimento do passado, como Modinhas imperiais (1930) e, especialmente, o texto que inclui reflexão sobre o escultor Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1737-1814). O texto se destaca como elaboração (1935) oriunda da célebre viagem a Minas Gerais de 1924, a “viagem de descoberta do Brasil”, da qual o autor participou junto com Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Blaise Cendrars, Olívia Guedes Penteado entre outros. Deve-se lembrar aqui da viagem anterior de Mário de Andrade a Minas que, realizada em 1919, resultou também em texto sobre a arte religiosa no Brasil (1920).

O enfoque desses textos e respectivos contextos norteia o estudo dos lugares e sentidos da etnografia experimentados por Mário de Andrade, em associação ao tema da viagem/excursão, idealizada ou realizada, mais distante ou mais próxima. Tais viagens emergem como dispositivos de deslocamento do olhar de partida que fundam a possibilidade do contato renovador com alteridades temporais e espaciais e propiciam na obra de Mário de Andrade arranjos narrativos e regimes de escrita diversos.

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