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Cosmopolitismo e gênero: mulheres mineiras na primeira metade do século XX

Mariana Chaguri e Fabio Querido

Cosmopolitismo e gênero: mulheres mineiras na primeira metade do século XX

Para contribuir com o projeto Minas Mundo, esta proposta recorta a participação de algumas mulheres mineiras na política e na cultura entre as décadas de 1920-1950. A ênfase estará, sobretudo, nas trajetórias e na produção intelectual, inicialmente, de três mulheres:
Elvira Komel e sua atuação na Legião Feminina Mineira, voltada sobretudo para as demandas acerca do sufrágio feminino e da participação de mulheres na vida pública; e no Batalhão Feminino João Pessoa, dedicado ao apoio ao movimento militar na base na Revolução de 1930. Nesse ponto, espera-se observar como dois movimentos de mulheres atuaram e ajudaram a configurar aspectos específicos do debate sobre o liberalismo político e os direitos civis nas primeiras décadas do século XX.
Eunice Vivacqua, cuja família promoveu e abrigou em sua casa aquilo que ficou conhecido como “Salão Vivacqua”, reunindo intelectuais e políticos durante as décadas de 1920 e 1930. Eunice escreveu Salão Vivacqua: lembrar para lembrar, livro de memórias sobre os salões e sobre a família que ajudam a desenvolver algumas das questões colocadas pelo projeto, em especial, quais os sentidos e significados assumidos pela imagem e função da “tradicional família mineira” quando rememoradas ou recontadas a partir da memória e da escrita de suas filhas.
Helena Morley, com foco especial na leitura feita por Roberto Schwarz em Duas Meninas, procurando ler o código patriarcal tensionando localismo, cosmopolitismo e gênero.
De modo preliminar, sugere-se aqui que existem muitas formas de se participar de um tempo, o que no caso da escrita e da produção das ideias implica em desestabilizar noções comumente assentadas sobre as imbricações entre autor, texto e contexto. Desse modo, aponta-se aqui que os temas ou as categorias acionadas para tratá-los, tais como família, patriarcalismo, localismo ou cosmopolitismo, possuem significados que dependem das contingências, das controvérsias e das experiências – individuais e coletivas.

Um mundo à deriva: a história e a memória das classes médias brasileiras na literatura de Luiz Ruffato

Enio Passiani

Um mundo à deriva: a história e a memória das classes médias brasileiras na literatura de Luiz Ruffato

Tratar das classes sociais, principalmente a partir da perspectiva das classes médias baixas, não é novidade em relação à literatura de Ruffato, uma vez que o tema já foi apontado por vários críticos e assumido pelo próprio autor em artigos de jornal e entrevistas como uma espécie de coluna que sustenta todo o seu projeto intelectual. O centro de suas preocupações é o homem comum e trabalhador, aspecto pouco comum em nossa história literária, frequente e majoritariamente composta por autores/as das classes médias mais abastadas que se dirigem a essas mesmas classes.

Nascido em Cataguases, MG, ele próprio oriundo das classes médias baixas, filho de um pipoqueiro e de uma lavadeira de roupas, Ruffato foi operário da indústria têxtil, pipoqueiro como o pai e atendente de armarinho na juventude. Ao fazer ficção de “baixo para cima”, opera um duplo movimento, que é um duplo questionamento: coloca em xeque a ideia de nação em nosso país, assim como a própria literatura brasileira, que silenciou a respeito de tal estrato social.

Desde sua pentalogia, Inferno provisório, até o seu último romance, Verão tardio, Ruffato debruça-se sobre uma camada social que, historicamente, vem se desintegrando, esmaecendo a ponto de tornar-se uma espécie de imagem fantasmática sem corpo e que se esforça, quase sempre sem sucesso, para se recompor e voltar a existir. Em sua pentalogia, as personagens, entre familiares e vizinhos, abandonam Cataguases para tentar a vida noutras cidades, como Juiz de Fora, Rio de Janeiro e São Paulo. Em Verão tardio deparamo-nos com o movimento de retorno da personagem principal para a mesma Cataguases, num reencontro absolutamente desastroso com sua família.

Espremidas entre as condições materiais de vida quase sempre precárias, exploradas por relações de trabalho profundamente desiguais, sonhos e ambições destruídos e relações familiares catastróficas, as personagens frequentemente rememoram o passado, conversam consigo mesmas na esperança de tentar encontrar e compreender o momento em que tudo começou a desandar. O passado irrompe no presente a todo momento, ora como tentativa de reviver o momento em que as esperanças em relação ao futuro ainda eram vivas e vibrantes, ora como âncora que arrasta e congela o presente no pretérito, impedindo o tempo de avançar.

É desde Cataguases que Ruffato procura problematizar a história e o destino das camadas médias baixas brasileiras, apresentando-se como uma das expressões literárias mais bem acabadas dos “de baixo”, de tal sorte que a literatura de Ruffato preenche um vazio que afeta tanto a literatura nacional quanto o pensamento social brasileiro, que ainda apresenta parca produção a respeito das nossas classes médias. Sua literatura, sem dúvida, ajuda a pensar e problematizar o Brasil.

Coleção de cacos: objetos biográficos na literatura mineira

Eneida Maria de Souza

Coleção de cacos: objetos biográficos na literatura mineira

A proposta em pauta está centrada na abordagem das narrativas literárias mineiras com enfoque na análise do sistema de objetos que possibilitam a relação entre tradição e modernidade, conduzindo ao debate sobre o cosmopolitismo. Com a utilização do objeto como elemento mediador para a construção de redes interpretativas que contemplam formas específicas de subjetivação individual e coletiva, pretende-se descartar a oposição entre sujeito e objeto, com vistas à produção de imagens da vida cotidiana e suas relíquias futuras. A fabulação de histórias no âmbito da literatura mineira do século 20, com particular enfoque no período modernista e pós-modernista, prioriza autores que dramatizam o sentimento de instabilidade e de permanente sensação de desterro na própria terra. O olhar cosmopolita concentra-se nessa encruzilhada entre paisagem arcaica e urbana, local e global, a partir do deslocamento constante dos lugares de origem e na tentativa de alcançar espaços heterogêneos que redefinem singularidades. A tradição cultural mineira, pautada pelo passado escravocrata e a herança europeia, guardou do passado resquícios e costumes compatíveis com o sentimento de renovação e superação dos sonhos de futuro.

1. Guardar e colecionar objetos e documentos pertencentes à saga familiar são atitudes próprias à sociedade burguesa e patriarcal, nas quais o apego à memória dos objetos confere ao seu possuidor o sentido de pertencimento a uma classe, um lugar e um clã, condições capazes de integrá-lo à sociedade. As Memórias de Pedro Nava são exemplos dessa prática. Os objetos, destituídos do valor de uso, passam a assumir o estatuto de valor biográfico, mágico e aurático. O culto ao objeto como relíquia de família representa o desejo de alinhamento ao passado e a preservação de valores patriarcais. 2. A proposta poética de Guimarães Rosa como escritor brasileiro foge da pecha de regionalista e se liberta dos modelos estrangeiros como matriz de influências. Redefine a defasagem entre cidade e província, com o processo de modernização e a presença de objetos que marcam esse conflito e as mudanças, como o rádio, pelo contato com as narrativas da cidade; a venda do pai, em Cordisburgo, celeiro de histórias dos fregueses, as quais mais tarde serão lembradas e reconstruídas pelo filho-escritor, entre outros inúmeros objetos. 3. Em Autran Dourado, as quixotescas e bovarianas leitoras de romances de folhetim ou de poemas patrióticos mantêm um terrível pacto com a solidão, o abandono e o fracasso. O retrato da sociedade patriarcal brasileira é delineado sob o signo da decadência e do término da imagem utópica das Minas Gerais, enriquecida com o brilho e a opulência do ouro. A canastra da personagem Biela, símbolo de sua vida humilde e simples do sertão mineiro (Uma vida em segredo) e a descrição do sobrado barroco de Rosalina, resquício da opulência do ouro nas Minas Gerais (Ópera dos mortos), constituem imagens significativas para a compreensão desse trágico cenário barroco e decadente.

Henriqueta Lisboa: trazer o mundo para casa

Elide Rugai Bastos

Henriqueta Lisboa: trazer o mundo para casa

Henriqueta Lisboa tem despertado nos últimos anos justificado interesse entre os estudiosos de literatura. Esse interesse se deve à importância de sua obra, mas também a sua fina e precoce percepção, acompanhada do questionamento, dos limites sociais impostos à mulher na sociedade brasileira Na área de sociologia, porém, embora tenham crescido as pesquisas sobre gênero e/ou movimentos feministas, seu nome é pouco citado. O abandono de algumas figuras fundamentais na reconstrução do processo social que ilumina o presente indica esquecimento do peso que constrangimentos estruturais, condicionamentos históricos e mesmo escolhas do passado têm sobre a ação. Afinal, a história não é apenas o cenário em que se desenrolam os acontecimentos, mas componente estrutural da análise sociológica.

Nesta pesquisa pretendo mostrar que em linguagem simultaneamente coloquial e sofisticada Henriqueta Lisboa explicita nas situações cotidianas aqueles constrangimentos, condicionamentos e escolhas; ultrapassa, assim, as fronteiras locais e traz o mundo para casa. E o faz não apenas por meio de sua requintada poesia, mas via ensaios e traduções, nas quais mostra como sua leitura dos autores universais “vem de dentro”, encontrando soluções engenhosas para as dificuldades da escritura de Dante, Ungaretti, Pavese (magnífico!), Lope de Vega ou Gabriela Mistral.

Confesso ter clareza da amplitude de meu objetivo e das dificuldades de alcançá-lo em suas várias facetas. Mas o próprio caminho da pesquisa irá colocando pedras que poderão ou não ser contornadas. Assim, vários impasses de caráter metodológico precisam ser superados ao longo da investigação. A leitura da obra de Henriqueta Lisboa é um primeiro passo para equacionar esse problema. O caminho nessa direção é amplo, compreendendo poesia, ensaios, traduções, correspondência e a reflexão da autora sobre seu próprio trabalho. Os passos seguintes se dão na consulta de uma bibliografia analítica sobre persona e obra, aliás, muito importante; consulta de arquivos documentais; entrevistas com especialistas na obra, entre outros. Só essa visão mais geral permitirá direcionar concretamente as indagações que levanto.

Minas e o mundo de Guignard

Eduardo Dimitrov

Minas e o mundo de Guignard

Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) é conhecido por suas “paisagens imaginantes”, compostas por igrejas barrocas, balões de São João, montanhas de Minas Gerais. Frequentemente, essas telas geram, nos críticos, associações que vão do patrimônio histórico à atmosfera onírica e surrealista. Intimamente vinculados à construção da paisagem como um componente do patrimônio de Minas Gerais, os quadros de Guignard confundem-se com Minas – não seria exagero pensar que imaginamos as cidades históricas também por meio desse acervo visual.

Debruçar-se sobre a obra e a trajetória do pintor pode iluminar aspectos do cosmopolitismo mineiro. O friburguense Guignard teve uma formação cosmopolita. Formou-se pintor frequentando a Real Academia de Belas Artes de Munique. Passou por Florença e Paris, onde participou do Salão de Outono. Ao retornar ao Brasil em 1929, inseriu-se no cenário artístico carioca recebendo algum reconhecimento ao participar do Salão Revolucionário de 1931. Aproximou-se de Oscar Niemeyer e Aníbal Machado ao integrar a Comissão Organizadora da Divisão de Arte Moderna do Salão Nacional de Belas Artes. Em 1944, a convite do prefeito Juscelino Kubitschek, transferiu-se para Belo Horizonte e passou a lecionar e dirigir o curso livre de desenho e pintura da Escola de Belas Artes, por onde, mais tarde, passaram Amílcar de Castro, Farnese de Andrade e Lygia Clark.

Guignard manteve-se inserido na rede de intelectuais que pensavam e implementavam o projeto modernista no Brasil. Sua produção, ao mesmo tempo que importava e mobilizava formas expressivas apreendidas na Alemanha, França e Itália, também respondia às diretrizes de um projeto elaborado pela elite nacional em diversas frentes – patrimônio histórico, instauração de novos valores estéticos, modernização das instituições de ensino de artes plásticas etc.

No âmbito do projeto Minas mundo: cosmopolitismo na cultura brasileira, cabe investigar a obra e a trajetória de Guignard para compreender a maneira como o artista mobilizou criativamente suas referências europeias nas respostas às diferentes diretrizes modernistas. Interessa investigar a construção de paisagens culturais, associando patrimônio histórico colonial a certa “cultura popular” na elaboração de um imaginário não só de paisagens representativas da nação, mas também de um “povo”, que atendesse ao projeto nacional modernista.

A voz lírica em Juiz de Fora: entre a natureza e o asfalto

Eduardo Coelho

A voz lírica em Juiz de Fora: entre a natureza e o asfalto

Juiz de Fora: poema lírico, de Austen Amaro, foi publicado em 1926, com ilustrações de Pedro Nava, tornando-se o primeiro livro do modernismo mineiro. Nessa obra, manifesta-se o caráter “primitivo” da realidade brasileira, com suas paisagens formadas de “avencas”, “jenipapeiros” e “bananeiras”, entre outros índices da natureza que se misturam à vida moderna, industrial, composta de “sirenes”, “fábricas”, “operários” e “chaminés”. No poema “Ex-libris” desse volume, o sujeito declara: “Eu canto a poesia da bigorna/ com a rigidez enérgica do bíceps!”, de modo a compor, mediante a energia do corpo, uma poética que se lança subjetivamente ao “asfalto que ressoa ao trepidar cosmopolita do capitalismo” em meio a uma “terra generosa”. Pretende-se analisar como a voz “lírica”, evocada já no subtítulo, participa da construção da cena que compreende, ao mesmo tempo, a singularidade local e o cosmopolitismo capitalista.

Modernismo, extrativismo e melancolia

Denilson Lopes

Modernismo, extrativismo e melancolia

A partir de uma perspectiva genealógica, nossa hipótese é que é possível ter como chave de leitura não só obras isoladas, mas uma constelação, um “outro Modernismo” marcado pela catástrofe ao invés da utopia; pela melancolia ao invés da alegria; pela sensação de fim do mundo ou de um mundo ao invés da inauguração de uma nova era; pelo fascínio pela lentidão que advém depois do fim e de paisagens devastadas, solitárias em detrimento da velocidade e da hipersensorialidade celebrada em grande parte do modernismo identificado com o ritmo da grande cidade. Essa genealogia foi em grande parte apagada ou tornada secundária na história do modernismo mais estudada em São Paulo, a partir dos desdobramentos da Semana de 1922; da renovação do regionalismo a partir de Pernambuco. Esse outro modernismo, nos termos de Paulo Venancio, será compreendido a partir da obra de Cornélio Penna, em especial, A menina morta (1954), de Lúcio Cardoso, em especial, Crônica da Casa Assassinada (1958) e seus desdobramentos nas artes visuais (Goeldi, Farnese de Andrade), e sobretudo no cinema, com certos filmes de Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Davi Neves, estabelecendo uma relação entre esse modernismo e o Cinema Novo distinta da escolha estratégica de Humberto Mauro por Glauber Rocha.

Trata-se da linhagem de uma sensibilidade social, marcada por um longo tempo de decadência, entre o fim do ciclo do ouro e do diamante em Minas Gerais a partir do século XIX, e a crise da cafeicultura no vale do Paraíba, entre o fim do Segundo Império e a crise de 1929. A partir da experiência de uma modernidade rural, dialogando com expressão de Ericka Beckman, trata-se de repensar as tensões entre provincianismo e cosmopolitismo por meio de uma leitura comparativa entre cinema, literatura e artes visuais. O trânsito em obras de diferentes linguagens se traduz numa leitura intertextual, intersemiótica e intermediática em vez de apenas de trabalhos estritamente monográficos sobre artistas ou inseridos dentro de uma linguagem artística específica e de seu campo artístico. Não se trata aqui de buscar adaptações reificando as relações de fonte, origem e obra adaptada, secundária, mas de produzir fricções entre os trabalhos, para que se possa compreender o modernismo para além dos limites de uma linguagem, embora se reconheça a centralidade da literatura para a formação dos artistas e dos debates intelectuais.

Cineastas mineiros (1968-1970): trajetórias políticas, geográficas e culturais

Daniela Giovana Siqueira

Cineastas mineiros (1968-1970): trajetórias políticas, geográficas e culturais

A virada 1968/1970 marca a produção de uma safra de filmes realizados por jovens diretores nascidos em Minas Gerais, que, longe de defenderem uma mineiridade mítica, realizam obras que fixam a paisagem mineira como lugar essencial para se pensar o Brasil daquele período. Essa escolha geográfica se faz em contraponto a um gesto migratório, que afetou boa parte de uma geração que, possuindo uma mesma base de formação (cineclubismo e crítica cinematográfica conformada em Belo Horizonte), foi morar no Rio de Janeiro no início da década de 1960. Lá escrevem seus roteiros e, cada qual a sua maneira, retornam ao solo natal. Esta proposta tem por interesse investigar dois desses realizadores, Maurício Gomes Leite com o filme A vida provisória (1968) e Carlos Alberto Prates Correia, com Crioulo doido (1970), sendo ambas as primeiras experiências dos diretores à frente do longa-metragem. Tal fato potencializa a discussão sobre o fazer e o pensar cinema, a partir de uma cena de origem, o Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais (CEC), que notabilizou a sociabilidade cineclubista enquanto sociedade intelectual, sobretudo nas décadas de 1950 e 1960. Ele constitui exemplo que, sob uma perspectiva historiográfica, amplia possibilidades que tensionam o jogo provincianismo/cosmopolitismo.

O perfil dos diretores escolhidos desdobra outras camadas sobre o fenômeno de produção. Trata-se de jovens realizadores de cinema, inseridos, portanto, em uma vanguarda central no mundo na década de 1960, vivendo, porém, em um país periférico, realidade que por si só aponta para o polo dicotômico local/universal. Sobre essa base de pensamento, a sobrevivência no tempo dos dois filmes aqui destacados, reverbera ainda outra questão sobre a relação província/centro, desta vez em âmbito nacional: o corpus é constituído por títulos não canônicos, praticamente ignorados pelos estudos de cinema feitos em seu próprio país de realização.

Centradas em Minas Gerais, as obras trazem uma pauta nacional, permeando questões que definiam discussões de relevância para o período. O diálogo é cosmopolita, mas feito a partir de uma matriz local, de experiências próprias que não afirmam o típico; e, nesse sentido, os filmes configuram um conjunto de imaginários sobre Minas, paisagens, ambiências, tratamentos familiares e sociais que enunciam uma forte vontade cosmopolita. Sabemos que em uma vasta produção literária e também na música popular, com o Clube da Esquina, realizou-se com destaque a premissa: a partir de Minas, o mundo! E no cinema? O que fica do cinema produzido a partir de Minas em uma discussão sobre o modernismo?

Sociologia mineira e sua aposta na empiria

Celi Scalon

Sociologia mineira e sua aposta na empiria

Tanto sertaneja quanto cosmopolita, Minas se constituiu em entreposto de uma nação que se formava, com culturas migrantes de diferentes cantos de um país continental, integrando ciclos agrícolas, mineradores, industriais, comerciais, intelectuais e culturais. Assim foi também na sociologia. Para a sociologia das desigualdades e estratificação no Brasil, muito se desenvolveu nas, a partir das e com as Gerais. Se suas serras alterosas revelam contrastes, suas formações e transformações sociais os refletem. Um eixo relevante nessa formação é a contribuição da produção sociológica mineira para o desenvolvimento do diálogo de ensaios e teses acerca da formação do Brasil com uma nova pesquisa com raízes empíricas e largo uso de métodos quantitativos. A reflexão sobre o Brasil ganhava números, amparos estatísticos, dados robustos e um vasto lastro na observação de cotidianos contrastantes em larga escala. Devemos a Minas Gerais uma significativa contribuição para o desenvolvimento de pesquisas de surveys; investigações comparativas; modelos com inferência regional, nacional e internacional; ciências sociais aplicadas e a abertura do cenário brasileiro a novos métodos, técnicas e instrumentos empíricos.

Nesse diálogo, observa-se também o traço do cosmopolitismo mineiro ao se constatar que, ontologicamente, Minas revela-se como um resumo do Brasil e o Brasil se encontra, ou se redescobre, em Minas. Minas sempre acolheu grupos e fluxos migratórios de diferentes regiões, também por ocupar posição geográfica, política e econômica que tangia tais movimentos: do Nordeste ao Sudeste, da antiga capital à nova, da “República do café com leite” à “Nova República”. As múltiplas regiões de Minas refletem características de suas fronteiras. O Sul de Minas assemelha-se a São Paulo. O Norte, ao Nordeste do país. O Triângulo lembra o Centro-Oeste e o Sertão reflete a nova fronteira agrícola. Contrastes também em suas cidades, com centros densamente forjados, como a capital; muitas áreas rurais e pouco povoadas; além de várias importantes cidades de médio porte, que operam como “capitais regionais”. Somam-se desigualdades econômicas e sociais profundas, como o pobre Vale do Jequitinhonha, com indicadores entre os menos desenvolvidos do país, à afluência econômica agrícola do Triângulo, além de outras tantas cidades e microrregiões que estão entre aquelas com maior IDH do país. Estudar e compreender Minas Gerais permite vislumbrar sinteticamente processos em curso no conjunto do país, como migrações, diminuição/elevação de desigualdades, entre outros com relevância para políticas públicas.

Esse traço revela características da sociologia desenvolvida nesses contextos, baseada na mobilização de suporte empírico para, junto das tradições do pensamento social, desenvolver uma sociologia aplicada com relevância e destaque internacional. Assim ocorreu em áreas de pesquisa como violência, avaliação e gestão da educação, ciência política e pesquisas eleitorais, além da sociologia e economia rurais. Alguns dos mais importantes centros de pesquisa social no Brasil nasceram assim e se tornaram referência para o diálogo com a sociologia no mundo, como o CEDEPLAR, o CAEd, o CRISP, além dos centros e departamentos em Viçosa e Lavras, dedicados à sociologia rural, e outros núcleos que se internacionalizaram como porta-vozes de uma reflexão nacional, feita a partir de larga empiria e profundo conhecimento local.

A partir dessa reflexão, apresentamos duas propostas:

1) Análise quantitativa de dados socioeconômicos, populacionais e de comportamento político, que demonstrem como os resultados obtidos para o estado de Minas Gerais refletem aqueles esperados para o país, indicando, assim, que Minas Gerais pode ser vista como uma “proxy” do Brasil. Neste caso, propomos focar em alguns tópicos relativos à área de estratificação e desigualdades, como educação, padrão de vida, juventude, além de comportamento político. Para tanto, serão utilizados modelos estatísticos.

2) Pesquisa qualitativa com um grupo de sociólogos mineiros que tiveram formação nos EUA e foram responsáveis pela “sociologia empírica” – uma marca da sociologia praticada em Minas –, e que, ao migrarem para diversos estados, consolidaram um fazer sociológico em todo o país. Alguns nomes considerados neste momento são: Simon Schwartzman, Olavo Brasil de Lima Junior, Renato Boschi, Elisa Reis, Bolívar Lamounier e Vilmar Faria. Contemplaremos também a criação do Curso de Métodos Quantitativos, que se estabelece na UFMG sob a liderança de Neuma Aguiar e de dois sociólogos de outra geração que vieram do Recife para a UFMG: Daniele Cireno e Jorge Alexandre. A metodologia adotada será de entrevistas em profundidade diretamente com os pesquisadores citados. Para acessar informações sobre Vilmar Faria e Olavo Brasil de Lima Júnior, propomos entrevistar Fernando Henrique Cardoso e Renato Boschi, respectivamente. Os nomes não se esgotam nos apontados aqui, uma vez que a técnica de snowball permite que novos atores surjam no decorrer das entrevistas.

Localismo e cosmopolitismo na memorialística de Afonso Arinos de Melo Franco

Carmen Felgueiras

Localismo e cosmopolitismo na memorialística de Afonso Arinos de Melo Franco

Minha proposta de trabalho para o projeto de pesquisa Minas mundo é investigar como o par conceitual localismo e cosmopolitismo ou seu equivalente particularismo e universalismo aparece na obra de Afonso Arinos de Melo Franco combinando-se, ou excluindo-se, em função de contextos específicos da experiência do narrador, e como cada um dos termos se constitui em perspectiva ou categoria a partir da qual ele observa o mundo e orienta a sua ação. Nesse sentido, a pesquisa utilizará dois corpora narrativos, as memórias e os ensaios. Sua obra memorialística, A alma do tempo, se constitui em objeto privilegiado para a análise do que estou considerando denotativa dos “contextos específicos de uma experiência cosmopolita e/ou provinciana”, como a infância, a viagem, a política, a diplomacia etc. Já a ensaística (O índio brasileiro e a Revolução Francesa: as origens brasileiras da teoria da bondade natural talvez seja o principal ensaio a ser estudado) pode lançar luz sobre como Afonso Arinos se vale dessas categorias para o seu trabalho de interpretação da sociedade brasileira. A principal hipótese do trabalho é a de que as relações de Afonso Arinos com o seu círculo familiar podem dar a chave para o entendimento de uma certa oscilação – entre contraste e afinidade – entre localismo e cosmopolitismo em A alma do tempo. Enquanto suas origens mineiras e brasileiras se aproximam de um ideal de (ou uma idealização da) autenticidade local, a reconstituição de uma tradição familiar a partir de seus ascendentes mais próximos assume um sentido cada vez mais artificial e pragmático na medida de sua associação à cultura europeia. Quanto às formas narrativas, sugere-se que o ensaio seria o meio pelo qual o autor realiza o trânsito entre as reflexões solitárias presentes nas memórias, voltadas para si e para os seus, e uma sociabilidade mais ampla, buscando o diálogo com os contemporâneos e afirmando-se como um intelectual público.

Clube da Esquina: encontros e despedidas nos caminhos da canção popular brasileira

Bruno Viveiros Martins

Clube da Esquina: encontros e despedidas nos caminhos da canção popular brasileira

Esquina é um lugar de encontro. Assim como clube traz a ideia da reciprocidade entre iguais. Contudo, quando perguntados sobre o que é o Clube da Esquina e como ele foi criado, seus integrantes não sabem responder exatamente o que aconteceu de fato. Uma coisa, porém, é certa: a amizade nasceu antes de qualquer uma de suas canções, compostas na grande maioria das vezes nas parcerias entre eles. A mistura de convivência, afeto e enriquecimento mútuo que combate a solidão, visando colocar fim à incompletude humana, é o grande segredo dessa obra coletiva de faces múltiplas e rara riqueza musical criada entre os anos de 1960 e 1970. Milton Nascimento, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Márcio Borges, Wagner Tiso, Toninho Horta, Lô Borges, Beto Guedes, Tavinho Moura, Nelson Ângelo, Flávio Venturini foram alguns dos sócios desse clube imaginário que reuniu em seus caminhos referências musicais consideradas até então inconciliáveis. Desde que se encontraram nas esquinas de Belo Horizonte, os compositores expandiram suas conexões com os sons da América Hispânica e com as tradições ancestrais do interior mineiro, das manifestações da África negra presentes nos congados e folias de reis ao catolicismo festeiro e popular; além de recorrer às novas possibilidades rítmicas inauguradas pela Bossa Nova. Em seus discos, eles transitavam também pelas linguagens mais modernas do jazz e do rock em circulação pelas cidades do ocidente, assim como por outras narrativas artísticas como o cinema, teatro, dança e literatura. O cosmopolitismo presente em LPs como Clube da Esquina, de 1972, e Clube da Esquina II, de 1978, teria inaugurado a World Music, muito antes do termo ser popularizado nos anos seguintes. Ao longo de sua trajetória, a voz enigmática de Milton Nascimento congregou em torno de sua figura todos esses amigos que viriam a ser seus parceiros musicais. Vindos das diferentes regiões de Minas Gerais, a maioria dos integrantes do Clube da Esquina não carregou consigo apenas influências culturais díspares, mas também histórias de vida e visões de mundo singulares. Cada um dos compositores trouxe, através de referências pessoais, também um pouco do seu lugar de origem. Eles, no entanto, nunca perderam de vista os caminhos que levaram o Clube da Esquina a ultrapassar as fronteiras entre os sonhos e os sons.

Betinho: do quarto para o mundo

Bernardo Ricupero

Betinho: do quarto para o mundo

Entre os quinze e os dezoito anos, Herbert de Sousa, o Betinho, morou num quarto, afastado da família. Hemofílico, contraiu tuberculose, mas os pais preferiram não interná-lo num sanatório. No quarto, leu furiosamente, fez aeromodelismo, fotografia etc. Curado da moléstia nos pulmões, cursou madureza e ingressou, em 1958, no curso de Sociologia na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O mundo se transformava então, a Revolução Cubana capturando a imaginação de jovens pela América Latina. Uma instituição secular como a Igreja Católica não ficou inerte, convocando o Concílio do Vaticano II.

Betinho era então militante da Juventude Universitária Católica (JUC) que, em aliança com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), passa a controlar a União Nacional dos Estudantes (UNE) e o movimento estudantil. No agitado início da década de 1960, o protagonismo da UNE é cada vez maior, tendo papel decisivo na campanha pelas Reformas de Base. Inevitavelmente, os jovens católicos entram em choque com a cúpula da Igreja, o que abre caminho para a fundação da Ação Popular (AP), organização da qual o mineiro de Bocaiúva é o primeiro coordenador nacional.

O golpe de 1964 leva Betinho a seu primeiro exílio. Como boa parte da cúpula do regime deposto, parte para o Uruguai. Logo, porém, retorna clandestino ao Brasil. No entretempo, a radicalização da AP se aprofunda, os jovens católicos convertendo-se ao maoísmo. Nosso herói, apesar de hemofílico, se “proletariza”, indo trabalhar numa fábrica de porcelanas em Mauá. Com o acirramento da repressão, se exila no Chile, onde se torna assessor do presidente de Salvador Allende. Um novo golpe leva-o, brevemente, ao Panamá e ao Canadá. Em Toronto, funda a Latin American Research Unit (LARU), centro de pesquisa sobre a América Latina.

Junto com a Abertura, ganha força a campanha pela Anistia, quando o Brasil “sonha com a volta do irmão do Henfil”. Betinho, como tantos exilados, retorna, finalmente, em 1979. No país, funda o Instituto Brasileiro de Análise e Planejamento (IBASE), organização que assessora movimentos sociais. A partir do IBASE, lança inúmeras campanhas como a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Cidadania, a chamada Campanha contra a Fome, que sensibiliza boa parte da sociedade. A última delas é em defesa dos infectados por AIDS, doença que o leva em 1997.

A trajetória militante de Betinho se confunde com as grandes questões do Brasil e do mundo na segunda metade do século XX. Hemofílico e oriundo de uma família da pequena-burguesia mineira, a maneira que encontra ânimo para sobreviver é abraçando um profundo messianismo. Inicialmente católico, depois maoísta, talvez tenha se convertido, finalmente, no que se poderia chamar estranhamente de um messianismo laico. Foi, de qualquer forma, a fome pelo mundo com a qual saiu do quarto aos dezoitos anos e encontrou satisfação respectivamente no catolicismo, na militância revolucionária, no trabalho que antecipa as organizações não governamentais (ongs), que marcou Betinho.

O mundo que engole o mundo: a escrita visual de Sebastião Salgado

Beatriz Malcher

O mundo que engole o mundo: a escrita visual de Sebastião Salgado

Sebastião Salgado nasce em 1944 em Aimorés, no vale do rio Doce. Ainda jovem, parte em direção à Vitória, onde estuda economia, e de lá em direção a São Paulo, obtendo seu título de mestre em economia pela USP. Fugindo da ditadura civil-militar, Salgado vai para a Europa em 1968 e se emprega no Banco Mundial, por meio do qual faz muitas viagens ao continente africano – onde tem o seu primeiro contato com a fotografia. Em 1973 decide se dedicar exclusivamente ao que chama de “reportagem fotográfica”. Ao longo de trinta anos circula nos mais diferentes cantos habitados do globo registrando realidades e modos de existência que expõem as antíteses das grandes promessas de progresso de nosso tempo.

De Minas para o Mundo, o fotógrafo parece repensar os processos históricos em curso a partir das margens; registrar os vencidos da história, ou uma história vista de baixo. O ponto de chegada desse percurso acontece entre 1993 e 1999 em seu projeto mais polêmico: Êxodos (2000). No entanto, a experiência desse ensaio tornou o registro de um mundo que devora o mundo impossível para ele. Diante da dor dos outros, o artista emudece. Sua voz, porém, é reencontrada em Aimorés. O ciclo se fecha: tendo saído de Minas em busca do mundo, é de volta a Minas que o fotógrafo consegue encontrá-lo. A partir do reflorestamento da fazenda de seu pai, Salgado compreende o absurdo da separabilidade entre humanidade e natureza, e dali em diante sua fotografia nunca mais será a mesma. O trabalho que faz nos anos que seguem tem como resultado o ensaio Gênesis (2013). Contra o mundo técnico e o tempo do progresso que leva à catástrofe, a nova fotografia de Salgado encontra uma outra temporalidade – dentro do século XXI, um tempo fora do tempo.

Levando em conta esse percurso, minha pesquisa propõe uma reflexão sobre a escrita da história através das imagens de Sebastião Salgado. Para tal, proponho estudar a fotografia de Salgado menos como uma reportagem visual e mais como uma fotografia de caráter narrativo, desenvolvendo uma leitura interna dessas imagens para a compreensão do modo pelo qual as questões sociais e ambientais são internalizadas na fotografia. A partir dessa leitura interna será possível entender a narrativa histórica composta por essas imagens levando em conta tanto os ensaios fotográficos em sua individualidade, quanto no conjunto de sua obra.

Cosmopolitismo e ciências sociais em Minas Gerais

Antonio Brasil Jr.

Cosmopolitismo e ciências sociais em Minas Gerais

Em larga medida, a emergência das ciências sociais no país, pelo menos enquanto empreendimento acadêmico organizado nos modernos moldes universitários, foi um típico experimento cosmopolita. Jovens (e alguns não tão jovens) professores europeus e norte-americanos, em estadias de curta, média ou mesmo de longa duração, foram decisivos para a implantação dos códigos (cognitivos, institucionais e sociais) associados ao empreendimento científico; do mesmo modo, os cientistas sociais formados no país conheceram formas de mobilidade internacional de diferentes tipos e intensidades, fazendo parte dos novos canais transnacionais de organização do debate científico. O caso de Minas Gerais, ao menos quando comparado com os outros mais estudados e tomados como paradigmáticos – os de Rio e de São Paulo –, é interessante porque sugere outros sentidos para esse experimento cosmopolita. Chamam a atenção especialmente os seguintes pontos: 1. a precocidade da moderna editoração científica, com a Revista Brasileira de Estudos Políticos, editada por Orlando Carvalho, e a Revista Brasileira de Ciências Sociais, promovida por Júlio Barbosa; 2. a interação entre certas disciplinas, como economia, administração e direito na grade do curso de bacharelado em Sociologia e Política, mantido pela Faculdade de Ciências Econômicas (FACE) da UFMG, discrepando dos outros cursos de ciências sociais então existentes; 3. a intensa conexão com os circuitos latino-americanos das ciências sociais, seja na formação de um programa de pesquisa em sociologia política – em forte diálogo com o grupo de Gino Germani na Universidade de Buenos Aires –, seja especialmente na formação pós-graduada na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) em Santiago do Chile, decisiva para toda uma geração de cientistas sociais mineiros que remodelou a sociologia e a ciência política até então existentes no Brasil. Em particular, interessa investigar aqui em maior detalhe a relação dessa geração de mineiros com os experts da Unesco Johan Galtung (norueguês) e Peter Heintz (suíço), que propuseram uma notável combinação de formação rigorosa em métodos e técnicas quantitativas de pesquisa e uma sociologia crítica e radical.

O prodígio da originalidade

Angelo Oswaldo de Araújo

O prodígio da originalidade

O escultor, entalhador e arquiteto Antônio Francisco Lisboa, Aleijadinho (1738-1814), nasceu e morreu em Vila Rica (Ouro Preto), tendo deixado uma obra de largo reconhecimento, como atesta o título de patrimônio da humanidade conferido pela Unesco à cidade de Ouro Preto e ao conjunto do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas. O que particulariza o legado do Aleijadinho, por sobre a qualidade extraordinária da incisão escultórica e do risco dos edifícios, é a originalidade conquistada a partir da soma de variada contribuição de estilos e das condicionantes do tempo e do meio em que viveu.

Filho de uma africana escrava, formou-se junto ao pai, o arquiteto, mestre carapina e construtor português Manuel Francisco Lisboa, recebendo lições de outros destacados autores vindos de Portugal, como Coelho de Noronha e Xavier de Brito. Seu estilo evoluiu do barroco para o rococó vigente na segunda metade do século XVIII, mas nada o deteve na busca de uma identidade própria, que naturalmente emergiu como resultante de sua capacidade de ir além de normas ou cânones. O historiador da arte francês Germain Bazin disse que Deus apareceu pela última vez na arte do Ocidente por meio da obra do Aleijadinho. O impacto que ela causou no poeta ainda simbolista Mário de Andrade, ao visitar as cidades históricas mineiras, em 1919, resultou numa das principais metas do modernismo da década de 1920: a busca da identidade brasileira e a emancipação do artista nacional no quadro do internacionalismo dominado pela produção europeia e norte-americana. Os modernistas de São Paulo consideraram o Aleijadinho como sendo o primeiro artista genuinamente brasileiro, exatamente pelo domínio subversivo que exerceu sobre modelos, padrões e estilemas impostos pela metrópole ao império colonial.

O Belo como Horizonte: moda & antimoda como imagem do cosmopolitismo

Angélica Oliveira Adverse

O Belo como Horizonte: moda & antimoda como imagem do cosmopolitismo

Pretendemos analisar a imagem do cosmopolitismo mineiro a partir de uma cartografia sensível dos espaços da cidade de Belo Horizonte e de sua relação com os fenômenos da moda e da antimoda. Para tanto, faremos um recorte entre dois séculos: 1920 a 2020. O espaço citadino moderno nos oferece os elementos para observarmos as transformações na história cultural da cidade. Diante dos processos de modernização social, pontuaremos a partir da antimoda a estetização do cotidiano. Nessa perspectiva, a arte e a arquitetura são essenciais para compreendermos o papel do modernismo mineiro.

Nossa pesquisa abordará as transformações na cultura visual e a influência da moda francesa na capital;  o processo de industrialização e o desenvolvimento dos têxteis; o surgimento das boutiques e o trabalho das costureiras e modistas; as transformações da cidade e a mudança dos espaços relacionados à moda nos anos de 1960 a 1980; e a criação dos cursos de estilismo e design na capital mineira e a profissionalização do setor.

O objetivo da pesquisa é elaborar um atlas que nos possibilite compreender a cultura material e visual entre dois séculos de moda ou da antimoda em Belo Horizonte. Seguindo algumas discussões teóricas de George Simmel sobre o princípio da imitação e distinção, pretendemos apresentar as instâncias da difusão dos modismos e a introdução de novos modos de vida que sugerem o princípio dos movimentos de estilo. Assim, analisaremos o trabalho relacionado ao estilismo e a transformação do vestuário, tendo como diretriz a instância da criação em design de forma a contextualizar os cenários e problematizar a autonomia e sensibilidade dos usuários.

Seguiremos, igualmente, a leitura de Roland Barthes a respeito dos conceitos de diacronia e sincronia para, observando as correspondências entre as décadas, tecer constelações históricas de 1920 a 2020. Entre o passado e o presente, analisaremos o trabalho das modistas, costureiras, alfaiates, estilistas, designers, fotógrafos, stylists, produtores, diretores de arte e modelos, de pensar o cenário em Minas Gerais.

A dinâmica da moda e da antimoda não somente reflete a transformação do tempo, ela confirma as afirmações de Walter Benjamin de que, ao analisarmos os sonhos das gerações que nos antecederam, nós acessamos um sonho de futuro. O belo como horizonte é, portanto, parte dessa promessa. Contudo, o horizonte de beleza em que iniciaremos a nossa pesquisa é diverso. Ele traz em seu cerne uma dimensão temporal que unifica, como nos ensinou Baudelaire, o transitório e o eterno. A imagem do cosmopolitismo mineiro propõe um novo horizonte para o belo, o qual potencializa os valores telúricos na medida em que explicita a complexidade de sua poética universal.

Sociologia mineira e sua aposta na empiria

André Junqueira Caetano

Sociologia mineira e sua aposta na empiria

Tanto sertaneja quanto cosmopolita, Minas se constituiu em entreposto de uma nação que se formava, com culturas migrantes de diferentes cantos de um país continental, integrando ciclos agrícolas, mineradores, industriais, comerciais, intelectuais e culturais. Assim foi também na sociologia. Para a sociologia das desigualdades e estratificação no Brasil, muito se desenvolveu nas, a partir das e com as Gerais. Se suas serras alterosas revelam contrastes, suas formações e transformações sociais os refletem. Um eixo relevante nessa formação é a contribuição da produção sociológica mineira para o desenvolvimento do diálogo de ensaios e teses acerca da formação do Brasil com uma nova pesquisa com raízes empíricas e largo uso de métodos quantitativos. A reflexão sobre o Brasil ganhava números, amparos estatísticos, dados robustos e um vasto lastro na observação de cotidianos contrastantes em larga escala. Devemos a Minas Gerais uma significativa contribuição para o desenvolvimento de pesquisas de surveys; investigações comparativas; modelos com inferência regional, nacional e internacional; ciências sociais aplicadas e a abertura do cenário brasileiro a novos métodos, técnicas e instrumentos empíricos.

Nesse diálogo, observa-se também o traço do cosmopolitismo mineiro ao se constatar que, ontologicamente, Minas revela-se como um resumo do Brasil e o Brasil se encontra, ou se redescobre, em Minas. Minas sempre acolheu grupos e fluxos migratórios de diferentes regiões, também por ocupar posição geográfica, política e econômica que tangia tais movimentos: do Nordeste ao Sudeste, da antiga capital à nova, da “República do café com leite” à “Nova República”. As múltiplas regiões de Minas refletem características de suas fronteiras. O Sul de Minas assemelha-se a São Paulo. O Norte, ao Nordeste do país. O Triângulo lembra o Centro-Oeste e o Sertão reflete a nova fronteira agrícola. Contrastes também em suas cidades, com centros densamente forjados, como a capital; muitas áreas rurais e pouco povoadas; além de várias importantes cidades de médio porte, que operam como “capitais regionais”. Somam-se desigualdades econômicas e sociais profundas, como o pobre Vale do Jequitinhonha, com indicadores entre os menos desenvolvidos do país, à afluência econômica agrícola do Triângulo, além de outras tantas cidades e microrregiões que estão entre aquelas com maior IDH do país. Estudar e compreender Minas Gerais permite vislumbrar sinteticamente processos em curso no conjunto do país, como migrações, diminuição/elevação de desigualdades, entre outros com relevância para políticas públicas.

Esse traço revela características da sociologia desenvolvida nesses contextos, baseada na mobilização de suporte empírico para, junto das tradições do pensamento social, desenvolver uma sociologia aplicada com relevância e destaque internacional. Assim ocorreu em áreas de pesquisa como violência, avaliação e gestão da educação, ciência política e pesquisas eleitorais, além da sociologia e economia rurais. Alguns dos mais importantes centros de pesquisa social no Brasil nasceram assim e se tornaram referência para o diálogo com a sociologia no mundo, como o CEDEPLAR, o CAEd, o CRISP, além dos centros e departamentos em Viçosa e Lavras, dedicados à sociologia rural, e outros núcleos que se internacionalizaram como porta-vozes de uma reflexão nacional, feita a partir de larga empiria e profundo conhecimento local.

A partir dessa reflexão, apresentamos duas propostas:

1) Análise quantitativa de dados socioeconômicos, populacionais e de comportamento político, que demonstrem como os resultados obtidos para o estado de Minas Gerais refletem aqueles esperados para o país, indicando, assim, que Minas Gerais pode ser vista como uma “proxy” do Brasil. Neste caso, propomos focar em alguns tópicos relativos à área de estratificação e desigualdades, como educação, padrão de vida, juventude, além de comportamento político. Para tanto, serão utilizados modelos estatísticos.

2) Pesquisa qualitativa com um grupo de sociólogos mineiros que tiveram formação nos EUA e foram responsáveis pela “sociologia empírica” – uma marca da sociologia praticada em Minas –, e que, ao migrarem para diversos estados, consolidaram um fazer sociológico em todo o país. Alguns nomes considerados neste momento são: Simon Schwartzman, Olavo Brasil de Lima Junior, Renato Boschi, Elisa Reis, Bolívar Lamounier e Vilmar Faria. Contemplaremos também a criação do Curso de Métodos Quantitativos, que se estabelece na UFMG sob a liderança de Neuma Aguiar e de dois sociólogos de outra geração que vieram do Recife para a UFMG: Daniele Cireno e Jorge Alexandre. A metodologia adotada será de entrevistas em profundidade diretamente com os pesquisadores citados. Para acessar informações sobre Vilmar Faria e Olavo Brasil de Lima Júnior, propomos entrevistar Fernando Henrique Cardoso e Renato Boschi, respectivamente. Os nomes não se esgotam nos apontados aqui, uma vez que a técnica de snowball permite que novos atores surjam no decorrer das entrevistas.

3x Minas Mundo: escritas de si no memorialismo modernista mineiro

André Botelho e Lucas van Hombeeck

3x Minas Mundo: escritas de si no memorialismo modernista mineiro

Queremos estudar a figuração do indivíduo e de processos sociais de subjetivação a partir de uma “escrita de si” no que chamamos provisoriamente de memorialismo modernista mineiro – MMM. Especialmente nos e a partir de textos de três autores centrais: as Memórias de Pedro Nava, em particular Baú de ossos (1972) e Balão cativo (1973); Boitempo (1968) e Menino antigo (1973) de Carlos Drummond de Andrade; e A idade do serrote (1968) de Murilo Mendes. Chamamos a atenção para o conflito tênue, mas decisivo entre indivíduo e sociedade nesses textos: uma subjetividade em busca dramática, não raro trágica, de individualização em meio à cultura objetiva representada pela família (a chamada “tradicional família mineira”) e pela sociedade e o Estado, inclementes estruturas de poder. Por certo, e isso é parte dos problemas empíricos e teóricos centrais da pesquisa, esse conflito parece ser crucial não apenas no MMM, mas também noutros textos de autores mineiros, como Cyro dos Anjos, Afonso Arinos, Lúcio Cardoso, Otto Lara Resende etc.

As figurações do conflito entre indivíduo e sociedade no MMM são a nosso ver indícios empírico-textuais de uma surpreendente construção social cosmopolita da diferença cultural brasileira. Cosmopolitismo relacionado à urbanização precoce de Minas Gerais, comparativamente ao restante do Brasil, a qual também ajuda a compreender o surgimento, no século XVIII, de uma literatura tão distintiva, com acentuado “cunho de universalidade” e um “gosto particular pela narrativa em primeira pessoa” – para lembrarmos “Poesia e ficção na autobiografia” (1976) de Antonio Candido.

A abordagem comparativa proposta toma como ponto de partida a codificação desse conflito em cada texto e no uso que se faz dos dispositivos disponíveis para essas escritas de si em diferentes gêneros – a prosa, a prosa poética, o poema. Assim, a partir de tópicas comuns que atravessam os textos, como a infância, a amizade, a sexualidade, entre outras, será possível perceber na prática desses escritores modernistas a operação não apenas do comentário direto sobre aspectos da relação indivíduo-sociedade, mas também do gesto literário de reescrita – em tensão e submissão, repetição e subversão – de gêneros associados à narração de si.

Mapear as camadas dessa reescrita cosmopolita e compor um repertório de formas de subjetivação figuradas no MMM ajudará a qualificar na literatura percursos e sequências de problemas formais e sociológicos duradouros. Afinal, as narrativas modernistas de si parecem simultaneamente contrariar e reforçar a individuação numa sociedade em que, historicamente, tanto a categoria de indivíduo desempenha papel problemático nas identidades sociais (não tendo perdido inclusive sentido pejorativo no cotidiano), quanto são cada vez mais recorrentes as representações da família como unidade moral da sociedade.

Por fim, mas não menos importante, aproximando o campo problemático das intepretações do Brasil de textos e práticas de escritas de si, poderemos ainda problematizar as relações entre individualismo e cultura política, centrais para a reflexão sobre dilemas históricos da sociedade brasileira recolocados de modo agudo na crise da democracia em curso.

Imagem e palavra: o CEC e a Geração Complemento

Andre Veiga Bittencourt

Imagem e palavra: o CEC e a Geração Complemento

O projeto de pesquisa pretende se debruçar sobre uma geração de intelectuais mineiros, sediada em Belo Horizonte nos anos 1950 e início de 1960, que se constituiu especialmente em torno de duas experiências coletivas: o Centro de Estudos Cinematográficos (CEC) e a Revista Complemento. Ainda que nem todos tenham participado dos dois grupos, por eles passaram figuras como Maurício Gomes Leite, Jacques do Prado Brandão, Silviano Santiago, Theotonio dos Santos, Ezequiel Neves, Klauss Vianna e Ivan Ângelo.

Alguns aspectos parecem particularmente interessantes nesse período e nesses grupos e funcionarão como um conjunto preliminar de questões para a pesquisa: 1) sua forma de discussão intelectual, ao menos inicialmente, se deu ao redor da cultura cinematográfica, a partir do cineclubismo, tendência esta que, mesmo remetendo ao final dos anos 1920, ganha força mundial no pós Segunda Guerra. Além dessa sociabilidade específica, pensar o cinema envolverá refletir, por um lado, sobre as implicações da imagem como forma e linguagem e, por outro, sobre o eventual peso que a comunicação e a cultura de massa assumia para essa geração – levando-se em consideração as possíveis tensões que os chamados cinema comercial e de arte jogavam naquele contexto; 2) seus integrantes não se restringiram à literatura, o que os diferencia de outras gerações intelectuais anteriores, abrangendo várias áreas artísticas e culturais como o cinema, a dança, o teatro e as artes plásticas; 3) de acordo com depoimentos dos participantes, essa geração depositava uma especial predileção para o que poderíamos chamar de pauta dos costumes ou comportamentais, que também se difundia na Europa e nos Estados Unidos naqueles anos, tais como o debate sobre as diversas sexualidades, o rock and roll e a própria boemia enquanto um estilo de vida.

Tendo isso em vista, desde um ponto de vista sincrônico está no escopo desta pesquisa situar essa experiência particular levando em consideração outros grupos que, no Brasil e no mundo, também estreitavam relações com o cinema e a cultura de massa, cuja incorporação nas técnicas e concepções do fazer artístico e intelectual começava a ser central justamente naquela década. Já de um ponto de vista diacrônico, a pesquisa buscará traçar relações dessa geração belo-horizontina dos anos 1950 com outras gerações intelectuais mineiras, especialmente os modernistas de 1920 e a chamada Geração dos anos 1940, procurando compreender as proximidades em termos de legados, passagens e também de rupturas operadas.

O pensamento visual de Humberto Mauro

Anderson Ricardo Trevisan

O pensamento visual de Humberto Mauro

Esta pesquisa se propõe a analisar alguns filmes realizados pelo diretor mineiro Humberto Mauro dentro do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), criado em 1936 no Rio de Janeiro por Gustavo Capanema. Nesse espaço foram produzidos cerca de 400 filmes educativos, dos quais mais de 300 traziam a assinatura de Mauro sobre os mais variados temas, como ciência, educação rural, personagens históricos, músicas folclóricas, literatura etc. Nesse vasto universo temático, temos a um só tempo o olhar pitoresco, que nos remete à vida rural, e o olhar da ciência, que visava mostrar o progresso e a modernização tecnológica, valores caros às políticas do Estado Novo. Os filmes de Mauro oscilam entre a tradição e o moderno, algo não estranho ao movimento modernista de 1930, que era fomentado pelo Estado e vinculado à busca das “raízes” da nacionalidade brasileira. Em uma época em que artistas eram enviados para Minas Gerais à procura de tais raízes, Mauro já vinha pronto nesse sentido, e seus filmes podem ser reveladores dessa estrutura de sentimento. É apressado, porém, rotulá-lo de modernista, muito menos nos moldes do modernismo mineiro da Revista Verde. Isso porque o cinema produzido por Mauro é carregado de ambiguidade e complexidade, como se fosse o elo entre dois mundos distintos: o da tradição, marcado pelo mundo rural, e o moderno, vinculado ao progresso e à ciência. Talvez ele seja um bom representante desse modernismo dos anos 1930, também ele pleno de ambiguidades. No entanto, na base dessa ambiguidade está o interesse em construir visualmente uma nação, algo que também podia ser percebido, respeitadas as proporções, em diversos países da Europa e América do Norte que, na mesma época, viam no cinema educativo um modo de fortalecer o sentimento cívico e o nacionalismo. Concebidos a partir dessa ideia, os filmes de Mauro podem ser lidos como parte do pensamento social brasileiro, construídos em termos de um pensamento visual (para lembrar Pierre Francastel, A realidade figurativa), e é nessa chave que pretendo analisá-los. Para tanto, minha contribuição ao projeto coletivo será investigar o modo como se dá essa relação entre o tradicional e o moderno e, particularmente, a noção de progresso que se constrói a partir dos filmes de Mauro, especialmente os de divulgação científica e os de educação rural. Em tempos como o nosso, em que há uma negação da história e do conhecimento científico e uma fragilização da própria democracia, é relevante tentar compreender como, a partir das investidas de um Estado totalitário, isso era um valor.

O pensamento visual de Humberto Mauro

Anderson Ricardo Trevisan

O pensamento visual de Humberto Mauro

Esta pesquisa se propõe a analisar alguns filmes realizados pelo diretor mineiro Humberto Mauro dentro do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), criado em 1936 no Rio de Janeiro por Gustavo Capanema. Nesse espaço foram produzidos cerca de 400 filmes educativos, dos quais mais de 300 traziam a assinatura de Mauro sobre os mais variados temas, como ciência, educação rural, personagens históricos, músicas folclóricas, literatura etc. Nesse vasto universo temático, temos a um só tempo o olhar pitoresco, que nos remete à vida rural, e o olhar da ciência, que visava mostrar o progresso e a modernização tecnológica, valores caros às políticas do Estado Novo. Os filmes de Mauro oscilam entre a tradição e o moderno, algo não estranho ao movimento modernista de 1930, que era fomentado pelo Estado e vinculado à busca das “raízes” da nacionalidade brasileira. Em uma época em que artistas eram enviados para Minas Gerais à procura de tais raízes, Mauro já vinha pronto nesse sentido, e seus filmes podem ser reveladores dessa estrutura de sentimento. É apressado, porém, rotulá-lo de modernista, muito menos nos moldes do modernismo mineiro da Revista Verde. Isso porque o cinema produzido por Mauro é carregado de ambiguidade e complexidade, como se fosse o elo entre dois mundos distintos: o da tradição, marcado pelo mundo rural, e o moderno, vinculado ao progresso e à ciência. Talvez ele seja um bom representante desse modernismo dos anos 1930, também ele pleno de ambiguidades. No entanto, na base dessa ambiguidade está o interesse em construir visualmente uma nação, algo que também podia ser percebido, respeitadas as proporções, em diversos países da Europa e América do Norte que, na mesma época, viam no cinema educativo um modo de fortalecer o sentimento cívico e o nacionalismo. Concebidos a partir dessa ideia, os filmes de Mauro podem ser lidos como parte do pensamento social brasileiro, construídos em termos de um pensamento visual (para lembrar Pierre Francastel, A realidade figurativa), e é nessa chave que pretendo analisá-los. Para tanto, minha contribuição ao projeto coletivo será investigar o modo como se dá essa relação entre o tradicional e o moderno e, particularmente, a noção de progresso que se constrói a partir dos filmes de Mauro, especialmente os de divulgação científica e os de educação rural. Em tempos como o nosso, em que há uma negação da história e do conhecimento científico e uma fragilização da própria democracia, é relevante tentar compreender como, a partir das investidas de um Estado totalitário, isso era um valor.

“Sou do mundo, sou Minas Gerais”: Milton Nascimento e os baianos

Maurício Hoelz

“Sou do mundo, sou Minas Gerais”: Milton Nascimento e os baianos

“Sou do mundo, sou Minas Gerais”. O verso, retirado do LP Milton de 1970, parece condensar o tema do projeto Minas Mundo, ao sugerir que tanto a pertinência ao universal se realiza pela afirmação da diferença, quanto, nesse caso em particular (com o perdão do jogo de palavras), o próprio particular (Minas) contém o geral, ou os Gerais (mundo). Ora, evocando palavras clássicas de Antonio Candido, não é essa “dialética rarefeita” entre localismo e cosmopolitismo que define a dinâmica específica da experiência cultural em países coloniais como o Brasil? A propósito, quão simbólico (ou sintomático, dependendo da chave de leitura) não é o título da canção, “Para Lennon e McCartney”? Uma dedicatória aos dois principais ícones e ídolos de um dos maiores fenômenos – então no seu auge – da história da cultura pop mundial (que, naquele mesmo ano, chegaria ao fim). Lembro, aliás, que versos anteriores da mesma música cantam “Eu sou da América do Sul/Eu sei, vocês não vão saber”, vocalizando a “assimetria de ignorância” – a desigualdade e a invisibilidade – que marca a hierarquia de discursos na geopolítica internacional e, logo, a dependência cultural do Sul global, como se diria hoje – esse lugar de fala em que os autores da música fizeram questão de se situar.

A partir desse tema, pretendo estudar a trajetória e a obra de Milton Nascimento como uma possível figuração do cosmopolitismo mineiro na cultura brasileira, contrastando-a ao que me parece constituir um outro tipo de cosmopolitismo, cujos vetores (e avatares) são os tropicalistas baianos, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Cada um a seu modo, esses três artistas incorporaram na linguagem musical elementos do que havia de mais moderno em circulação pelas metrópoles do mundo filtrados à luz das tradições e inovações locais, produzindo uma estética cosmopolita que ganha expressão “formal” no repertório sonoro; nas letras e títulos das canções; nas capas de discos; nas parcerias, regravações e turnês internacionais; nas performances no palco e na concepção dos espetáculos.

Para dar apenas o exemplo do mineiro, Milton combina e experimenta com, entre outros elementos, o jazz norte-americano, o samba-jazz, o rock, a bossa nova, os cantos de trabalho dos negros escravizados, a música ritual dos índios, a herança da arte religiosa barroca e da música sacra das cidades coloniais de Minas, os corais do hinário cristão, os cânticos católicos e os ritmos folclóricos das festas populares, o cancioneiro da América Hispânica e a nueva trova. Saído de uma província do interior de uma ex-colônia tropical localizada na periferia do Ocidente, o mineiro realiza a “travessia” do mar “de dentro” de Minas rumo à terra prometida da celebridade internacional e se proclama “cidadão do mundo”.

A hipótese preliminar que eu estou construindo encontra uma pista no episódio polêmico – a ser rastreado em materiais da época – em que os baianos teriam afirmado que os negros e os “tambores de Minas” (nome de espetáculo de Milton de 1997) foram domesticados pela Igreja Católica. Prepondera aí uma preocupação com as supostas raízes autênticas da cultura e com a identidade (e a unidade, ainda que uma “geleia geral”, no título da canção de Gil) dela. Isso implica um tipo de cosmopolitismo autocentrado nas experiências híbridas de “origem” e que opera como uma espécie de atualização (de acerto dos ponteiros do relógio) e de compatibilização da cultura autóctone singular com o moderno (representado pelos países centrais), por meio da importação das inovações internacionais. Basta lembrarmos da junção do ponto de macumba com a guitarra elétrica na música dos tropicalistas. Trata-se, portanto, de um cosmopolitismo mais voltado para dentro, cujo sentido é afirmar a originalidade da diferença, ao passo que o mineiro, a meu ver mais centrífugo, estaria mais voltado para fora e para a universalidade diferencial, vamos dizer. Nessa visão o cosmopolita não é o polo oposto ao local (ao provinciano) – não há aqui “sentimento dos contrários” (para retomar a expressão do mesmo Antonio Candido). E sim um tipo de relação descentrada de convivência com o universal e as multiplicidades a partir das diferenças, que implica movimento e abertura em várias direções. Raízes da Bahia, rizomas de Minas.

Lançamento: conversa musical

Agosto 18, 2023

Qual Minas colonial? Uma visão historiográfica

Dezembro 6, 2022

Seminário MinasMundo: Cosmopolíticas

Outubro 27, 2022

Manifesto: Cosmopolitismo em defesa da democracia

Julho 10, 2022

Cataguases-mundo: a revista Verde

Lançamento
projeto minasmundo: o cosmopolitismo na cultura brasileira

Textura sonora: Viagem na família (Drummond)

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Cataguases-mundo: a revista Verde

Pedro Meira Monteiro e Flora Thomson-DeVeaux

Textura sonora: Viagem na família (Drummond)

O grupo de trabalho “Textura Minas Mundo”, formado por Sérgio Bairon, Marília Librandi, Lucas van Hombeeck, Flora Thomson-DeVeaux e Pedro Meira Monteiro, realiza montagens sonoras a partir de materiais relacionados ao projeto Minas Mundo. Neste vídeo, o poema “Viagem na família”, de Carlos Drummond de Andrade, é sobreposto à versão em inglês de Elizabeth Bishop, nas vozes de Pedro Meira Monteiro e Flora Thomson-DeVeaux, com textura sonora de Sérgio Bairon, design de Glória Afflalo e produção do vídeo de Ilana Paterman.

Contagem de mundos: o singular cosmopolita cinema mineiro

Agosto 18, 2023

Qual Minas colonial? Uma visão historiográfica

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Cataguases-mundo: a revista Verde

Marco Antonio
Gonçalves

Contagem de mundos: o singular cosmopolita cinema mineiro

Montagem feita a partir de trechos dos filmes da cena de cinema de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, de onde partem as narrativas dos filmes da produtora Filmes de Plástico e do diretor Affonso Uchoa. Filmes em que ecoam problemas e questões capazes de redesenhar uma imagem do Brasil em que se inserem, agora, temas incontornáveis, como raça, classe, gênero, produzindo novas conexões, apontando para outras configurações socioculturais da sociedade brasileira contemporânea. E que, ao proporem temas insurgentes, repensam o cinema enquanto lócus de contestação e crítica a projetos, tão redentores quanto autoritários, sobre o Brasil. Cinema que se realiza, fortemente, como produção colaborativa construída na vizinhança e na partilha, investindo numa narrativa sobre e de Contagem, que é aqui, literalmente, contagem de mundos, histórias vividas, intimidades, diários de vidas que, ao confrontarem mundos reais e imaginados, produzem imagens contraditórias que esgarçam as fronteiras entre o periférico, o cosmopolita, o singular e o universal.

Drumond, testemunho da experiência humana

André Botelho
Lucas von Hombee

3x Minas Mundo: escritas de si no memorialismo modernista mineiro

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Silviano 8½

Agosto 2, 2022

Onde mora o modernismo? A caderneta de endereços de Ronald de Carvalho

Outubro 12, 2020

Silviano 8½

Silviano Santiago

Silviano 8½

edição de Maurício Hoelz e Lucas van Hombeeck

Dossiê montado a partir de um depoimento do escritor e crítico Silviano Santiago, que assina sua apresentação, sobre seus anos de formação em Formiga e Belo Horizonte – MG. A fala, feita em 2016, aborda sua juventude e relação com a Revista de Cinema e o cineclube do CEC (Centro de Estudos Cinematográficos), dando conta do que, em suas palavras, foi a primeira geração literária formada pelo cinema no Brasil. Além do depoimento, o conjunto conta com uma entrevista com Guy de Almeida feita por Marcelo Miranda a pedido de Silviano e com o texto Salaud Mauricet sobre sua amizade com João Maurício Gomes Leite, ambos em torno da mesma cena cultural de críticos, escritores e artistas mineiros das décadas de 1950 e 1960.

Durante o século XX, no Brasil, o requisito cultural que habilita o jovem a se apresentar como escritor comporta três fases distintas.

Desde o início do século, passando pelo Modernismo e se enveredando pelos anos 1940, o requisito inicial era a boa leitura dos clássicos da Literatura, associada ao desejo de se instruir pelas novas correntes das pesquisas estéticas e do pensamento social. A correspondência trocada entre os grandes escritores modernistas, hoje ao alcance do público, é um manancial de boa informação.

O fascínio pelo cinema, como entretenimento de bom nível e como arte, leva o jovem a ter diante dos olhos a combinação entre palavra e imagem (ou, em termos antigos, entre literatura e teatro). Suas leituras sobre estética moderna, ou de vanguarda, e sobre pensamento social contemporâneo são contaminadas pela imagem e a montagem cinematográfica. Chegavam depois os livros de literatura, clássicos e contemporâneos, segundo a afinação que se queria dar à sensibilidade pessoal. O romance PanAmérica, de José Agripino de Paula, dá pano pra manga.

A ruptura maior acontece durante a ditadura militar (se for o caso de datar com muita precisão as três fases). Nem literatura nem cinema. O principal requisito se funda na experiência coletiva do espetáculo, ao vivo na rua e no palco, ou em imagem na telinha. O jovem que virá a ser escritor se interessa mais pela música popular e pelos espetáculos em manifestações dignas de estádio de futebol. O “influxo externo” tem a ver com o mundo artístico pop. A MPB ganha a primazia. Em 1967, no programa “Esta noite se improvisa” (TV Record), Caetano e Chico demonstram a notável erudição em… música popular. Chico Buarque ter-se transformado em escritor no meio de sua carreira, não é exceção, é regra. Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu, seria bom exemplo.

O depoimento que ora irão ler tem lugar histórico definido. Naquele momento, o jovem se dedica de corpo e alma ao conhecimento metódico da história do cinema e de sua estética. Seu interesse se insere na época áurea dos cineclubes, que se esparramam um pouco por todo o Brasil. Lá está, na plateia, o gaúcho Luis Carlos Maciel, que não me deixa mentir. Época também em que a resenha de filme, em semanários e cotidianos, ganha espaço e destaque. Influencia a bilheteria. Dificilmente o cinema europeu teria tido o êxito de público que teve sem as campanhas que eram levadas a cabo pelos “críticos de cinema”.

Não cito o nome do jornal, mas conto outro caso. A crítica de filme comercial de má qualidade, mas com potencial de grande bilheteria, era preterida na pauta dos jornais comprometidos com os $$$ dos anúncios. As redes de cinema têm lá son pouvoir caché. A sala provinciana ou não imita em miniatura o que acontece no teatro da Broadway. A má recepção crítica a uma peça pode pôr abaixo um espetáculo ansiosamente aguardado. Assista-se ao filme A malvada (All about Eve), com Bette Davis e George Sanders no papel de crítico. Em 2020, o mundo editorial já está tomado pelo fenômeno. Bye-bye, críticos.

Salientem-se, finalmente, as exceções aos esquemas rígidos. Muitas vezes são elas que emprestam à literatura a inicial em maiúscula. Grande sertão: veredas é belo exemplo.

 

I

Sérgio Cohn: Hoje teremos o Silviano falando sobre a Revista de Cinema, que é uma revista muito especial. Não há necessidade nenhuma de apresentar o Silviano…

Silviano Santiago: Você sabe como é que o Darcy reagia, não é? “Eu gosto de ser apresentado…” (Risos)

SC: Dizem que o Silviano é um acadêmico, não conheço…Você podia começar contando um pouco do contexto de Minas Gerais naquele período.

SS: Em primeiro lugar eu gostaria de dar os parabéns ao Sérgio por esse trabalho de enorme importância que ele está fazendo. Tenho que fazer o garoto-propaganda aqui: são dois volumes para a gente ter uma ideia do que era essa revista.[1] É uma antologia, os principais artigos publicados segundo os dois organizadores, Marcelo Miranda e Rafael Ciccarini.

Eu vou ter que fazer um pouco o que é uma pré-história no caso de vocês, e história no meu caso, porque é uma revista dos anos 1950/1960. Ela começa em 1954, portanto acredito que a maioria de vocês nem tinha nascido. A gente pode colocar de cara um tema teórico bastante importante, histórico mas também teórico, que é como surge a primeira geração literária cujo fundamento não é a literatura, mas o cinema. Essa é a grande questão que eu queria abordar. A segunda, que eu vou tentar expor em narrativa e não em teoria, e por detrás da qual está a primeira questão, é como é que a literatura pode surgir da leitura não do livro, mas do filme.

Um dos livros importantíssimos para nós naquela época foi o de uma crítica francesa, Claude Edmonde Magny, que infelizmente ficou louca, mas que era extraordinária; e que por ter ficado louca desapareceu do mapa. É autora de um ensaio que para nós era extraordinário. Título: A idade do romance americano (em francês L’âge du roman américain). Era uma leitura fantástica porque a autora analisa como a famosa geração perdida norte-americana – Gertrude Stein, Hemingway, Steinbeck… – passou a escrever narrativas a partir da montagem cinematográfica. O mais óbvio de todos é John dos Passos, autor da trilogia U. S. A. Mas o que era fascinante, e nos entusiasmou muito, é que isso nos obrigou a fazer uma passagem do romance psicológico francês, de análise, introspectivo, para narrativas em que o importante era o comportamento (behavior) do personagem, assim como acontece no cinema. A introdução de personagens “burros” – o gângster, o lutador de boxe, por exemplo – não permitia mais aquela narrativa sofisticada de Madame Lafayette no século XVIII, ou de Benjamin Constant, Stendhal no século XIX. Tinha que se passar por um outro tipo de narrativa, que era uma narrativa comportamental. Essa é a grande questão discutida pela autora, que para nós foi muito importante nesse contexto.

A outra questão é que o nascimento dessa geração cinematográfica em Minas Gerais se faz em cima do eclipse de outra, a geração Edifício. A capa da revista Edifício é do Heitor Coutinho, um grande artista plástico mineiro que infelizmente desapareceu da cena artística. Vocês veem que a capa tinha traços surrealizantes. É uma revista de 1946, portanto de uma geração que foi solidária durante a Segunda Grande Guerra e a ditadura Getúlio Vargas. Eram todos muito coerentes e os nomes são exatamente das figuras anteriores à geração sobre a qual eu devo falar hoje. A revista se chama Edifício e a epígrafe é de Carlos Drummond Andrade, retirada de famoso poema dele: “Que século, meu Deus! – exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício”. Os nomes dos jovens participantes da revista são incríveis; vou saltar alguns porque são menos conhecidos, mas todos são solidários politicamente e todos vão entender o que eu quero dizer por solidariedade. Nesse número eles são entrevistados e todos são comunistas, sem exceção. É fascinante como essa solidariedade lembra muito a da pós-ditadura de 1964: durante a ditadura militar houve grande solidariedade, e só depois é que começa a haver diferenças. Cito alguns participantes. Valdomiro Autran Dourado, romancista, uma querida minha que é Vanessa Neto, contista, Otto Lara Resende, escritor, Fernando Sabino, romancista e colunista, Paulo Mendes Campos, poeta e tradutor, Wilson Figueiredo, jornalista, Jacques do Prado Brandão, poeta e crítico de cinema, Hélio Pellegrino, analista, Otávio Alvarenga, romancista, Francisco Iglesias, historiador, Etienne Filho, jornalista e técnico de vôlei, e assim vai. Essa é uma geração totalmente literária. Essas figuras se tornaram reconhecidas no Rio de Janeiro, e é só ler O encontro marcado para ver que é uma geração que nasce da leitura da literatura, enquanto a nossa é bem diferente. Nasce num clube de cinema.

Basta o título de algumas entrevistas para entender. Francisco Iglesias, o grande historiador e o melhor de longe dessa geração, diz: “agora não tenho dúvidas em afirmar que foi a leitura dos autores marxistas o que mais me marcou no sentido da orientação”. Mais óbvio, impossível. O seguinte é Pedro Paulo Ernesto, uma figura que desapareceu, tido como muito inteligente: “necessitamos mais literariamente de artistas que descubram o trágico individual”. Qualquer semelhança com Graciliano Ramos não é mera coincidência. Depois eu passo para o Wilson Figueiredo: “é preciso também tirar o chapéu à presença do determinismo histórico”. Tudo bem escancarado. É uma geração solidária, apresentam um programa comum. Esse programa é o Edifício, é este novo edifício sobre o qual seria erguida a nova sociedade brasileira depois da Segunda Grande Guerra Mundial e da ditadura Vargas em 1946.

Plateia: Mas chegando ao Rio ninguém ficou marxista, não é?

SS: É, já começaram pelos casamentos: o Fernando, como vocês sabem, casou-se com a filha do Governador; o Hélio, numa família da mineração…

Mas nós, então jovens, éramos sensíveis a isso. Usando o lugar-comum, era uma geração chapa branca. E a nossa geração tenta abrir um espaço, que não será na literatura porque não há mais solidariedade entre nós. Acho isso importantíssimo na revista, não há nenhum elo que ligue um ao outro de maneira muito forte do ponto de vista ideológico. E agora eu começo a falar propriamente da Revista de Cinema. Nela são nítidas três ou quatro linhas, depois explicarei o porquê da discussão sobre a quantidade de linhas divergentes: a primeira era a comunista, com uma figura fantástica, Fritz Teixeira de Salles. Ele terminou como professor em uma universidade de Brasília e, desde os anos 1930, pertencia ao Partido Comunista. Dizia a lenda que ele tinha trabalhado muito para o PC durante a ditadura Vargas. No pós-guerra e na revista, vocês podem imaginar que o Fritz vai ser o grande defensor do neorrealismo italiano. A solidariedade continua na Itália: vocês devem ter visto Dom Camillo, aquele filme que é uma esculhambação contra a solidariedade, fraco mas fascinante.

A segunda figura importante, que talvez do ponto de vista da revista seja a mais importante de todas, porque conseguiu o dinheiro para editá-la, é o Cyro Siqueira. Tenho impressão de que é uma pessoa praticamente desconhecida de vocês. O Cyro Siqueira, se vocês conhecem a crítica carioca, seria o Muniz Vianna de O correio da manhã, o crítico que adora o cinema norte-americano. O Siqueira tem os melhores artigos que se pode imaginar em torno do neorrealismo norte-americano. Que eu me lembre ele pouco escreveu sobre o neorrealismo italiano, mas fez os melhores artigos sobre filmes como o de Robert Wise, The set-up (Punhos de campeão), um filme maravilhoso; ou ainda sobre os ótimos filmes de Stanley Kramer, um deles O invencível, com Kirk Douglas, também sobre boxe. São obras fantásticas. Depois passamos a Elia Kazan, responsável por Sindicato dos ladrões, com Marlon Brando, e outros mais. Aliás, saiu pela Companhia das Letras agora um livro sobre cinco dos grandes diretores de Hollywood que trabalharam em favor dos Aliados durante a Segunda Grande Guerra Mundial, John Houston, John Ford e outros. E o Cyro Siqueira era o melhor intérprete dessas figuras. Fez leituras realmente admiráveis desses cineastas. Muitos deles padeceram nos inquéritos levados a cabo pelo senador McCarthy.

A terceira figura, que foi meu mentor e com quem eu mantive as melhores relações, já que fui me distanciando do cinema por razões que vocês conhecem, era Jacques do Prado Brandão. Ele era uma figura um pouco mais velha e pessoa extremamente sofisticada, advogado de profissão e defensor do cinema francês, em particular dos filmes chamados poéticos. O melhor exemplo seria Jean Cocteau, mas também Marcel Carné, de Os visitantes da noite e do Boulevard do crime (Les enfants du paradis). Todos esses filmes se caracterizavam por uma linguagem poética, que não interessava ao Fritz, do neorrealismo italiano, nem ao Cyro, do cinema americano. É isto que eu acho fascinante nesse grupo: havia um verdadeiro diálogo ideológico, muito discreto mas que, lendo com cuidado os textos, é possível perceber.

E em quarto lugar, a Igreja se interessou. Aí surge uma figura que eu acho macabra (e há um artigo brilhante do Maurício [Gomes Leite] contra ele), que é o famoso padre Guido Logger. Ele é colaborador regular da revista, e sua adesão tardia (não é mineiro) serve para vocês verem a importância que a revista começou a adquirir. Aqueles de letras e de artes podem checar uma informação que eu vou dar: a revista associada ao clube de cinema, o CEC (existe, aliás, um livro a esse respeito chamado A presença do CEC, Centro de Estudos Cinematográficos), vai possibilitar um alargamento muito grande do público exclusivamente cinematográfico. Porque ao clube de cinema vão, por exemplo, os que estão querendo ser escritores, os que estão querendo trabalhar com artes plásticas, os que estão querendo trabalhar com música clássica, mas acabaram não trabalhando, como o Silvio Castanheira, e aqueles que queriam trabalhar com teatro, como Carlos Kroeber, o Carlão, e o João Marschner. Vocês devem conhecer o Carlão do filme do Saraceni, A casa assassinada. Ele interpreta o gordo Timóteo, grande criação de Lúcio Cardoso. Foi um grande diretor de teatro e era um grande intérprete, que a Globo realmente estragou.

Graças ao Carlão, montamos em Belo Horizonte, em 1957, Fim de jogo, de Samuel Beckett, no teatro do antigo Casino da Pampulha. Uma coisa de louco, enquanto o Luis Carlos Maciel, aqui presente, estava lá em Porto Alegre fazendo o Godot de Beckett. O Carlos Kroeber ganhou uma bolsa para Yale, que era uma grande escola de teatro em 1956, e voltando de lá trouxe as ideias sobre a possível montagem de Beckett. Não sei se vocês sabem, mas o Luis Carlos é o primeiro autor no mundo a escrever um livro sobre Samuel Beckett, e isso é extraordinário. É o livro que vem como primeiro título na bibliografia levantada pelo professor Raymond Federman.

Mas nós fizemos Fim de jogo em Belo Horizonte, e eu tive a infelicidade de traduzir o texto. Hoje eu morro de vergonha porque nós o traduzimos do francês, não do inglês; eu tinha um conhecimento razoável de francês, mas não para traduzir. O João Marschner, que era nosso amigo fez uma revisão do texto do ponto de vista teatral, por assim dizer.

Luis Carlos Maciel: Uma coisa interessante no Beckett, que é um fenômeno do teatro moderno, é que é responsável por versões em francês e em inglês de uma mesma peça.

SS: Que são completamente diferentes!

Luis Carlos Maciel: E ele escreveu os dois! Porque ele era irlandês e a língua natal era o inglês; depois foi morar em Paris e escreveu em francês. Escrevia as peças em francês e ele mesmo traduzia para o inglês. Quando eu trabalhei meu texto sobre Godot usei as duas versões.

SS: E são contraditórios! Existem diferenças! Por exemplo as referências a Deus em inglês são My gosh, em francês é uma expressão grosseira, Bon sang. O texto em inglês é muito cuidado do ponto de vista, por exemplo, escatológico, enquanto o francês não, é bem escancarado. Uma grande crítica de teatro carioca, Bárbara Heliodora, que só conhecia a versão inglesa de Fim de jogo (Endgame) foi a Minas assistir à peça e falou que a tradução era muito ruim, mas isso porque ela só conhecia a versão inglesa. É claro que a tradução não era boa, mas não pelas razões que ela evocou, de fidelidade ao texto original. Era fiel, mas ao texto em francês.

Plateia: Uma vez eu tive uma experiência com uma grande crítica teatral carioca, com o Godot. Na versão francesa, não havia um momento em que os dois vagabundos começam a trocar insultos até que um deles lança uma ofensa que é considerada final, que é “critic” – que era, evidentemente, o crítico de teatro. Quando fiz a tradução, botei essa esculhambação final, crítico de teatro. A dona crítica disse que o texto do Beckett era maravilhoso, mas que infelizmente o diretor havia decidido pintar um bigode naquela Monalisa. Um dia eu escrevi a ela dizendo: “olha, esse bigode quem pintou não fui eu, foi o Samuel”. Tem que reconhecer que num momento de fraqueza Samuel Beckett pintou bigodes na Monalisa dele.

SS: Voltemos então um pouco à revista, ao CEC. Eu comecei falando da diversidade de discursos – o marxista, o liberal e o poético… –, e me referi a três mineiros, ao Fritz, ao Cyro e ao Jacques. A eles se soma uma figura que será extremamente importante para nós e para a crítica cinematográfica no Brasil, que é o Paulo Emílio Sales Gomes.

Paulo Emílio Sales Gomes tinha a grande vantagem de ser amplo o bastante para se expressar nos três discursos ideológicos, dominantes na revista. Sua tese, como vocês sabem, era sobre o melhor do cinema poético francês, que é o diretor anarquista Jean Vigo. Paulo Emílio se exilou cedo na França porque era anarquista e não era bem aceito nem pela ditadura Vargas, que começava a pintar no horizonte, nem pelo Partido Comunista. Foi a sorte dele, porque tendo ido para Paris, vai trabalhar com Henri Langlois, que era o todo-poderoso diretor da Cinemateca Francesa. Quando ele retorna ao Brasil, e isso foi um gesto maravilhoso do francês, o Langlois oferece ao Brasil e o Paulo Emílio traz cópias dos filmes da Cinemateca Francesa. Tínhamos na Cinemateca de São Paulo cópias de todos os filmes que havia na Cinemateca Francesa. Tanto que em 1961, quando eu cheguei em Paris para fazer meu doutorado, uma das primeiras coisas que eu fiz foi ir à Cinemateca ao lado da Escola Normal, onde ensinava Althusser, e vi no programa que eu já tinha assistido a todos os filmes. A Cinemateca emprestava os filmes para o Clube de Cinema em Belo Horizonte, então eu já tinha visto O gabinete do doutor Caligari, Potemkin, Ivan, o terrível, A paixão de Joana d’Arc, os clássicos da vanguarda francesa, como Un chien andalou, em suma, todos os filmes que contam para um rato de cinemateca… – isso tudo em Belo Horizonte.

Naquela época, talvez vocês saibam, o auxiliar do Paulo Emílio na Cinemateca era o Rudá de Andrade, filho de Oswald de Andrade, que passará por circunstâncias trágicas em Paris. Mas quem fazia o trabalho mesmo na Cinemateca era uma figura completamente desconhecida, que merece ser mencionada porque era quem pegava as latonas de filme em 16mm e as despachava para nós na rodoviária paulista. Ele se chamava Caio Scheiby e fazia um trabalho extraordinário com os clubes de cinema dos estados. Era quem carregava a mala. O Paulo Emílio tinha mil preocupações, o Rudá era um bon vivant.

Plateia: Deixe-me fazer uma pequena interferência. Eu não tinha muito conhecimento do que havia em Minas Gerais nessa época da minha juventude. Só fui descobrir o que existia em Belo Horizonte quando fiquei amigo do Ezequiel e ele me contou um monte de coisas; mas agora eu vejo que na mesma época em que isso acontecia lá, em Porto Alegre acontecia algo semelhante. Havia uma geração intelectual predominantemente marxista anterior à minha, que editava uma revista que ficou famosa chamada Horizonte, e eram todos comunas. E a minha geração, quando começou, foi aprender também no cinema, e abriu o Clube de Cinema, que funcionou como nossa cinemateca. Foi obra de uma personalidade interessantíssima, P. F. Gastal, que era crítico de cinema. Os filmes que você mencionou – O gabinete do Doutor Caligari, A paixão de Joana D’Arc… – eu assisti com 17 anos.

SS: Eu não quero te interromper, mas um terceiro ponto que eu gostaria de colocar é o nosso relacionamento com o Rio Grande do Sul, que era maravilhoso. Vocês várias vezes encenaram peças de teatro lá em Minas Gerais. Encenavam um autor de teatro francês “sofisticadésimo”, Jean Tardieu, que vocês mesmos traduziam e que escreveu peças curtas e bem humoradas antes do [Eugène] Ionesco. Tínhamos também uma relação fortíssima com a Bahia, com o pessoal da revista Mapa; de que faziam parte o Glauber, o Paulo Gil, a Sônia Coutinho, e tantos outros; e também com Pernambuco, o Jomard Muniz de Brito. Mas isso eu gostaria de discutir mais adiante porque senão não termino.

Entrando então no quarto ponto, essa nossa geração é muito semelhante à geração atual de jovens. Porque havia em comum a todos nós a juventude, e só. O primeiro artigo que escrevi na Revista de Cinema, meu batismo-de-fogo, foi sobre o filme musical. Ismail Xavier chama a atenção para ele no prefácio desta edição que ora apresentamos. Embora ele não soubesse deste detalhe, eu o escrevi – juntamente com o Maurício Gomes Leite – com 17 anos, uma loucura, meu deus do céu! Maurício tinha a mesma idade que eu e nós dois éramos bem iconoclastas diante do grupo de críticos, já estabelecido – vejam como é que a juventude surge dentro da juventude! São dois artigos enormes sobre filme musical. Não puderam nem ser publicados num mesmo número da revista. Entramos na parada, dizendo: “olha, o problema pode ser outro no cinema”. Nós havíamos nascido durante a Segunda Guerra e fomos educados – ele, em Montes Claros, e eu, em Formiga − pelos filmes musicais de Hollywood – Betty Gable, Fred Astaire, Gene Kelly, aqueles todos grandes dançarinos… Então, com 17 anos nós rompemos a tradição imposta pelos três mestres, já citados. Eu devo tê-lo escrito em 1953 (nasci em 1936), portanto tinha essa idade. E o artigo era histórico, traça a história do filme musical passando por várias fases, até chegar a Gene Kelly. Fala também sobre o filme musical moderno/contemporâneo. Uma coisa fascinante da juventude é o desejo de congraçamento, importante também para o grupo religioso, a que não pertencíamos, e que levantei inicialmente com a alusão ao padre Guido Logger. A igreja católica será importante naquele momento, através dos movimentos politizados, JIC, JOC, LIC, LEC, Juventude Estudantil Católica, Juventude não sei quê Católica, Liga não sei quê Católica. Desse grupo se destaca uma das figuras que faz parte das manifestações religiosas de caráter mais político naquele período que é o Betinho. Ele não está afinado com a gente, nem poderia estar. A gente brincava muito, chamava de Jic-jec-lic-loc o pessoal católico, um pessoal, diga-se, muito forte em Minas Gerais.

A questão relevante aqui é observar que a juventude se organiza hoje através das redes sociais e nós nos organizávamos através de instituições estudantis. Detalhe interessante se pensarmos que nossa geração era pré-ditadura militar de 1964. Quem bancava tudo eram os famosos Diretórios Centrais dos Estudantes (UNE, no Rio de Janeiro). Tínhamos uma revista na faculdade de Letras, Mosaico, com impressão paga pelo DCE, que também pagava nossas viagens de estudo, e, entre os mais velhos, uma das figuras importantíssimas dessa geração, lembro agora, é o arquiteto Silvio Vasconcelos. Talvez tenham ouvido falar dele, um grande especialista em arquitetura colonial mineira, com importante livro sobre Ouro Preto, que foi também diretor da faculdade de arquitetura. Na condição de diretor, era responsável por boas verbas. Depois de 1964 Sílvio foi obrigado a se exilar porque tinha pagado viagens dos estudantes de arquitetura de Minas Gerais a Cuba, e vocês podem imaginar que prato cheio os militares não tiveram em 1965.

Plateia: Havia um grupo integralista? Darcy falava deles.

SS: Não no grupo de cinema. Estou falando da Revista de Cinema, não de Minas Gerais. Mais próximo de uma postura integralista seria o padre Guido Logger, não sei se vocês vão querer chamá-lo de fascista. Quem estudou muito bem a questão religiosa dessa época foi um professor de comunicação da PUC, Miguel Pereira, que era ele mesmo católico. O catolicismo foi muito importante para a internacionalização do Cinema Novo. Os primeiros filmes daquela geração chegaram a festival da Itália graças ao seu organizador, o padre Colombiano (colombiano não se refere a nacionalidade, é o nome dele). Se não me engano, o convidado ao Festival Latino-Americano de Pesaro foi Nelson Pereira. Eu acabei sabendo dessa história toda bem mais tarde, e passei a informação para o Miguel. Fiquei sabendo dela através de um grande amigo meu em Paris nos anos 1980, que fora secretário do padre Colombiano. Refiro-me ao professor Amos Segala, que então era responsável pela bela coleção de clássicos da literatura latino-americana, subsidiada pela UNESCO.

Então há uma relação forte entre o aparecimento do cinema brasileiro na Europa e o catolicismo. Vidas secas, do Nelson, recebeu o Prix de 1’Office Catholique du Cinéma. O catolicismo de esquerda, não o de direita. Não sei se é esse o caso do padre Logger, porque ele defendia a censura. O Maurício tem um artigo sobre isso na revista, se não me engano está no primeiro volume da antologia que têm em mãos: Respostas sem aspas de julgamentos apressados a um artigo que se declara a favor da censura escrito por um padre e dirigido a críticos irresponsáveis. Esse artigo é maravilhoso. Mas essa é a nossa versão do catolicismo na crítica cinematográfica.

O Maurício Gomes Leite acaba se politizando completamente até 1964 e é obrigado a sair de Minas Gerais. Vem para o Rio de Janeiro trabalhar como crítico no Correio da Manhã, onde terá como um grande padrinho Otto Maria Carpeaux, com quem faz um documentário chamado O velho e o novo. Se quiserem assistir ao curta, há uma cópia na Cinemateca do MAM. É sobre uma jovem antropóloga muito amiga dele, Ligia Sigaud, que entrevista Otto Maria em 1965 ou 1966, bem no calor da hora. Em seguida, ele roda um longa-metragem um tanto desastrado, mas que é ótimo, Vida provisória. Desastrado porque para a época era muito no gênero Truffaut e, naquela altura, o Brasil já era mais Godard. É uma obra autobiográfica (autoficção, diríamos hoje) sobre os desentendimentos dele com esse crítico que vai ser responsável pela Revista de Cinema, o Cyro Siqueira – o protetor dele, digamos, em Minas Gerais, com quem ele vai se desentendendo politicamente. O elenco tem Paulo José, Dina Sfat, Joana Fomm, Mário Lago…; é uma grande produção que passou completamente em branco, o que é um absurdo. Depois o Maurício Gomes Leite se autoexila em Paris, onde termina a vida como funcionário da Unesco e já pouco escrevendo sobre cinema. Mas eu estou tentando agora, junto com a editora da UFMG, reunir as críticas e ensaios do Maurício porque são extraordinários.

E agora passo a discorrer sobre a forma como um e o outro vão se colocando.

A gente se autoafirma primeiro com o ensaio sobre filme musical, que é quase uma galhofa, mas ao mesmo tempo não é; esses objetos meios ambíguos que a gente jovem gosta de trabalhar. Em seguida, descobrimos nosso grande mestre em crítica cinematográfica: André Bazin. Eu me julgo divulgador de Bazin em Minas Gerais porque publiquei no Estado de Minas dois artigos imensos, com um título meio brincadeira, meio verdade, chamado “Reader’s Digest: André Bazin”. Naqueles artigos faço o resumo dos ensaios de Bazin que estão no dia de hoje no volume Qu’est-ce le cinéma?. Os jovens se tornam mais e mais fãs de Bazin, enquanto os velhos vão se definindo mais e mais como adeptos do cinema realista-naturalista. Nós, jovens, éramos leitores de carteirinha de uma revista chamada Cinema Nuovo, dirigida por um grande crítico italiano, Guido Aristarco, e o Cyro Siqueira e outros eram leitores de uma revista inglesa, excelente também, Sight and Sound. A Cahiers du Cinéma ainda não existia, depois nós é que a trazemos de uma certa maneira. A segunda fase da revista, dirigida pelo José Haroldo Pereira, já será puro Cahiers du Cinéma

No meu caso, a partir do final dos anos 1950, eu começo a defender Michelangelo Antonioni. Talvez eu seja das primeiras pessoas a escrever sobre ele no Brasil. Era ainda o primeiro Antonioni, o de Cronaca di un amore, que aqui se chamou Crimes d’alma, e que, quando eu vi, fiquei completamente enlouquecido e comecei a escrever e escrever. Tem um artigo meu que está incluído nesta antologia, se eu não me engano, chamado Cronaca di un amore. Eu descobri o cinema italiano novo, completamente diferente do neorrealismo de Rossellini, Vittorio de Sica, Zavattini, que depois vai desembocar no notável L’avventura, esses filmes todos de Antonioni, que hoje são clássicos. Então eu abro a segunda fase da Revista de Cinema para o novíssimo cinema italiano, enquanto o José Haroldo Pereira a abre para o esplêndido Hiroshima, mon amour, que será seguido com outro ensaio sobre O ano passado em Marienbad. Já o Maurício fica bem impressionado com o François Truffaut, que ele depois vai detestar, substituindo-o pelo Godard. É realmente fantástico como dentro da Revista de Cinema a geração que a fundou foi sendo substituída por uma nova. Defendemos também o novo cinema norte-americano, em particular pelo modo como está sendo representado por um grande produtor, Stanley Kramer. Ele produziu o primeiro filme do Marlon Brando, The men [Espíritos indômitos]. A gente começa a ficar entusiasmado com essa nova geração americana que vai dar atores como Marlon Brando, James Dean etc. Caminho aberto para a admiração do rock and roll

Plateia: Você fala dessa transição do Truffaut para o Godard como se fosse uma coisa automática, natural, mas como se deu isso? O cinema do Godard é de certa forma uma reação muito mais potente ao próprio cinema americano. Tem alguma coisa a ver com isso ou não?

SS: Claro. A noite americana do Truffaut foi uma grande decepção para nós porque ele vai fazendo mais e mais um filme como os americanos, enquanto o Godard vai entrando mais e mais no experimentalismo (o plano-sequência, de que fala Bazin, já estrutura a montagem ousadíssima de À bout de souffle), que é o que nos interessa. E aí talvez haja uma mistura que eu quero também desenvolver: o cinema é fantástico porque ele possibilita o encontro, num clube de cinema, de um grupo multi-artístico. O Maurício, por exemplo, nunca fez literatura, mas dialogava com o pessoal de literatura, de artes plásticas, com uma vanguarda que aparece, que é a nossa revista literária Complemento. Nessa revista está também Frederico Morais, cujo primeiro artigo escrito e publicado é sobre o Branco sobre o branco, do Malevich. Estou falando de 1954/1955, a Complemento era uma revista literária bem fininha, bem vagabundinha de que nós fomos diretores.

Plateia: Além da questão política em relação aos Estados Unidos, havia uma questão estética mais profunda? Queria que você falasse um pouco mais sobre isso.

SS: A grande questão do cinema para nós todos era a montagem, de Eisenstein, que você vê nos concretos. O que é a poesia concreta? Uma reflexão cinematográfica sobre o que é a poesia. Assim, nós nos distanciamos de João Cabral, que era um grande ídolo, e entramos no concretismo. Glauber Rocha tem uma carta de 1956 para um amigo baiano que trabalha na Rede Globo, de quando ele visita Minas a convite do Fritz Teixeira de Salles. Lá ele faz uma palestra sobre José Lins do Rego e Jorge Amado que para nós foi um escândalo porque já éramos entrosados com Mallarmé, Valéry e poesia concreta, e a carta diz assim: “são todos homossexuais e concretistas”.

Plateia: Mas ele já tinha feito aquele curta dos quadrados? [Referência ao curta Pátio, o primeiro de Glauber]

SS: Não, isso era o Glauber com 19 anos, em 1956.

Plateia: Pasolini também entra nesse diálogo como poeta concretista, não?

SS: Claro, mas o Pasolini é tardio. Os primeiros são os franceses. Eu próprio editei uma revista chamada Margens/Márgenes que tem as cartas do Maurício (de Paris) para o José Haroldo Pereira (no Rio de Janeiro) nas quais ele vai explicando como surge a raiva dele do Truffaut. Então, por um lado, há uma questão de vanguarda, pela qual o Maurício vai ficando mais e mais interessado, e, por outro, uma questão de montagem. Nós estávamos lendo Bazin, que extrai do cinema americano mais comercial a ideia do plano-sequência, com as famosas cenas de Orson Wells e William Wyler. E obviamente ficamos deslumbrados quando Godard fez À bout de souffle, que é quase todo plano-sequência. Então começamos a sacar que tudo aquilo que nós víamos no Bazin sobre plano-sequência, câmera na mão, profundidade de campo, a crítica da montagem segundo Eisenstein, fazia muito mais sentido do que Truffaut, que fazia um filme convencional de campo e contracampo.

Plateia: Mas vocês deixaram a questão da montagem como dogma, então?

SS: Não, era uma questão de interesse. Há preocupações que eu tentei mostrar que são amplas. Há uma preocupação com as artes plásticas: uma figura importante para nós era o Augusto Degois, que fazia tapetes maravilhosamente bem (um deles está na prefeitura daqui do Rio de Janeiro). Havia diálogo do cinema com as peças de Jean Cocteau (A voz humana), [2] de Thornton Wilder (Our town), Beckett (Fim de jogo), Eliot (Crime na catedral)…

O índice da antologia da Revista de Cinema é muito bem feito porque ele começa a partir de determinado momento a dizer “Cinema e outras artes”, depois “Cinema e pintura”, escrito por Frederico Morais. Eu não diria que existe dogma. O fascinante desse grupo do CEC é que não havia mais essa ideia da possibilidade de uma homogeneidade no grupo, e isso era muito importante para nós. Eu era amicíssimo do Fritz, que tem vários textos sobre coisas literárias minhas; ele foi operado da cabeça em frente de onde eu moro, no Hospital de Ipanema, e eu ia lá todo dia; era amicíssimo do Jacques, que não tinha nada a ver com o Fritz, odiava comunismo e tinha uma visão mais poética; também era amigo do Cyro, que era um americanófilo do tipo Muniz Vianna no Rio de Janeiro; e assim por diante.

E havia o Silvio Castanheira que escrevia sobre trilha sonora….

Plateia: Agora, fascinante é gente de 17 anos entender montagem.

SS: Não, não acho. Naquela época a contribuição teórica que nós tínhamos era o Film sense em inglês, a bíblia daquela montagem tradicional, que era desconstruída pelo André Bazin no Ontologia do cinema com profundidade de campo e plano-sequência. Isso vai transparecer em todos os meus livros; por exemplo, tem os que são escritos em plongée/contre-plongée.

SC: Tem um meta-debate importante sobre a crítica na revista. Como ele surgiu? Foi uma necessidade de renovar a crítica brasileira?

Plateia: Eu queria contar minha historinha. Quando muito jovem eu fui à Bahia, e o Glauber tinha o roteiro de um filme intitulado Deus e o diabo na terra do sol. Eu li o roteiro, que tinha 489 planos, sei lá quantos, porque ele era todo decupado conforme a montagem russa, eisensteiniana, e conforme o gosto dos produtores de Hollywood. Plano geral, plano médio, close, era todo picadinho ainda naquela divisão que hoje está completamente demodé e defasada, só usada em agências de publicidade atrasadas. O vídeo na coluna esquerda e o áudio na coluna direita: a coluna esquerda diz o que você vê e a direita o que você ouve. Deus e o diabo era todo assim, e era maior do que o filme que saiu porque ainda tinha uma terceira parte sobre as ligas camponesas que foi limada, ficando só os dois primeiros ciclos: o ciclo do cangaço e o do beato. A filmagem do Glauber era assim: a claquete batia uma vez da cena 84 até a 122, porque ele tinha transformado toda aquela linguagem clássica que vem do cinema mudo de Eisenstein para uma linguagem que estava entrando na moda através principalmente de Godard. E por que eram possíveis esses planos-sequência enormes? Para André Bazin o que interessa é o plano-sequência, pode ser com câmera parada.

SS: Estou falando de uma geração que não vem da literatura, mas do cinema. No momento em que se tem o cinema como objeto de leitura começa-se a se ter uma diversidade de leituras que é fascinante. A do Fritz Teixeira Salles, que é, segundo os princípios zhdanovistas [referência ao pensador sovitético Zhdanov], realismo socialista barra pesada et cetera; a do Cyro Siqueira, que é uma visão liberal, que não se esconde de maneira nenhuma; a do Jacques, que é uma visão poética; e a do Guido, que é religiosa. E no título do artigo já se vê que o Maurício se incomodava com aquele tipo de discurso. Não é que o padre Guido Logger seja uma pessoa desagradável, é o tipo de discurso que ele movimenta e dá vida que desagradava. Todos os participantes movimentam e dão vida a discursos que não se homogeneizam. Era óbvio que não havia possibilidade de, no plano das ideias, homogeneizar aquelas pessoas. Então não se pode mais discutir simplesmente o filme, é preciso discutir o método, ainda que ele seja implícito. Essa discussão sobre o método é muito alvissareira para o pessoal da revista, porque se começa a perceber que não há mais possibilidade de um diálogo muito fácil no plano discursivo, no plano de admiração que se tem pelo filme. Então essa discussão sobre métodos surge já nesse momento final da revista, e não no momento inicial, senão estaríamos na década de 1970, quando surge o estruturalismo, em que primeiro se discute o método e depois se faz a leitura. Naquela época havia as leituras, os discursos, e o desejo de discutir o que nós estávamos fazendo. Não o que nós estávamos fazendo como na resenha do jornal, mas em termos de discurso, e aí cada um vai se definindo. A organização desta antologia foi muito feliz porque ela chega num determinado momento em que a discussão cinematográfica é sobre gêneros. O que é cinema? Existe algum gênero privilegiado dentro do cinema? Qual? O Cyro diria imediatamente: é o faroeste. O cinema da aventura, da grande viagem, da imaginação, que tem como grande diretor John Ford, ou quem começa a seguir os seus passos, e nós o adoramos, que é John Houston. O tesouro de Sierra Madre para nós é o que há de mais maravilhoso – o Bolaño inclusive vai retomar a história do autor desconhecido no livro 2666 –, e aí há o gosto pela aventura que domina o pensamento liberal.

Depois vem a grande discussão ideológica do cinema do pobre, da L’art des pauvres, no Alemanha ano zero, que mistura a pobreza com a infância. Um dos filmes que nós adoramos se chama Jeux interdits, sobre duas crianças logo depois da Guerra e que tem a ver com a questão oposta da velhice, muito bem usada no Brasil pelo Cacá Diegues no Chuvas de verão e que surge também com Umberto D., de Vittorio de Sica. Então aparecem essas questões de gêneros e temáticas propiciando que a discussão sobre método não seja algo leviano. É uma discussão barra pesada, que leva as pessoas a mudarem de ideia, repensando ou modificando. Um exemplo foi o Glauber. Quando Glauber foi a Belo Horizonte falou sobre José Lins do Rego, Jorge Amado e Os sertões de Euclides da Cunha, e se vocês virem o filme é basicamente isto. O cangaceiro, o beato e a terceira parte que o Luis Carlos Marciel mencionou – é um grande elogio à Liga Camponesa do Julião –, que ele não fez, mas que o Sérgio Ricardo salvou com uma canção, levando a ação revolucionária para o mar que vai virar sertão, e dizendo “isso aqui tem futuro”. Pergunta-se é como é que é que ele ficou amigo do Golbery. Foi porque o Golbery era isto: “nós temos que acabar com o Brasil arcaico, que são os cangaceiros e os beatos”. E que é a tese do Antônio das Mortes, que tem algo do tenentismo, matador de cangaceiro e matador de beato. Os filmes do Glauber são extremamente elaborados, não são comerciais, simples de ser vistos. Terra em transe é um filme difícil de ser lido, compreendido, porque são coisas extremamente organizadas mas de repente o tom anárquico domina; a belíssima cena da câmera em redor do cangaceiro, que obviamente não está em nenhum script, é produto da imaginação anárquica do Glauber, que sempre trabalhou nessa linha. Mas aí estamos em 1964, e a revista nem existia mais.

Plateia: Você está falando de 1960; por que até agora não mencionou o Nelson Pereira dos Santos?

SS: Ele não existia nos tempos da primeira fase da revista, embora, como disse acima, tenha recebido os primeiros prêmios estrangeiros. Eu próprio vim ao Rio de Janeiro entrevistar o Alex Viany, um crítico que se tornara cineasta. Publiquei duas entrevistas imensas em jornal. Ele tinha feito um filme extraordinário com a Dóris Monteiro. A questão do Nelson Pereira dos Santos já foi levantada aqui, era a questão do pobre, que já vinha sendo trabalhada. Não interessava tanto a Jacques do Prado Brandão, mas o Fritz tinha orgasmos e o Cyro Siqueira achava muito bem feitos os filmes, embora não fosse exatamente o que ele esperava do cinema.

A discussão sobre método tem esta vantagem: a gente não precisa ficar batendo na mesma tecla. Já se sabe mais ou menos o tipo de discurso que vai receber bem ou mal aquele filme.

Plateia: O fato interessante é que o Glauber era leitor da Revista de Cinema, que era mandada para a Bahia. Ele foi a Belo Horizonte, e quando fez o primeiro filme chamou dois críticos mineiros para serem assistentes, Flávio Pinto Vieira e Schubert Magalhães.

SS: E a mãe do Glauber tinha uma pensão na Bahia onde nós todos ficamos hospedados de graça. O Flávio foi substituto do Cyro no jornal O Estado de Minas e o Schubert chegou a filmar… Frederico também esteve na Bahia, o Klaus e a Angel Vianna também. Disse atrás que mantínhamos um bom contato com Salvador.

Plateia: Você contrapôs o cinema-montagem ao cinema plano-sequência. É engraçado porque a minha leitura tem muito mais a ver com cinema de narrativa e cinema de montagem, remontando ao começo do século XX. E hoje, se eu fosse analisar o cinema atual, chegaria à conclusão de que ele é muito mais de narrativa do que de plano-sequência ou montagem.

SS: Você e a torcida do Flamengo! Não há novidade nisso, eu estou falando de 1950.

Plateia: Mas na revista vocês de certa forma anteciparam a vinda do cinema predominantemente narrativo?

SS: Vamos acertar a palavra narrativa? Essa palavra é usada quando se escuta American Idol e o Simon diz “olha, você canta muito bem e é capaz de não simplesmente dizer a letra, mas fazer uma narrativa da letra”. A narrativa se tornou um lugar-comum que para mim hoje é escandaloso. Estou falando de uma pessoa de 80 anos que não tem muito a ver com isso. Essa discussão teórica já está no Umberto Eco, se você quiser, com a Obra aberta. Já está no Barthes da Analyse structurale do récit. Essa ideia de narrativa permeia tudo, e ficou na moda agora porque todo mundo quer fazer alguma coisa que seja compreensível pelo grande público. A narrativa é questão de mercado.

Plateia: Naqueles anos vocês tinham a consciência de ter uma paixão muito grande pelo objeto, sendo ele cinema ou André Bazin, já com uma certa tendência à desconstrução e desconfiança da teoria que vocês liam?

SS: A discussão sobre método e crítica é exatamente isto: desconfiar. Essa era uma parte importante do debate da revista. Nós já tínhamos essa consciência. Mas não por sermos estruturalistas; eu sou derridiano, tenho que pensar antes de poder escrever. Essa discussão acontecia por uma razão prática: as pessoas não se entendiam mais. Não no plano social, pois nós íamos todos a um lugar chamado Camponesa, comíamos pão de queijo e era uma maravilha. Eu tive algumas das minhas melhores aulas de História dadas pelo Francisco Iglesias na Camponesa. Um dia ele me puxou a orelha e falou: “você está muito preocupado com a estética, tem uma coisa importante que é a história”. E foi ótimo porque eu passei a ler sobre os intérpretes do Brasil e isso fez parte da minha formação. Mas eu não lia absolutamente nada de história, porque o que nós aprendíamos na escola era horrível, um livro de história do Brasil do Joaquim Silva da edição Melhoramentos. Depois eu fui ler história mesmo, Casa-grande & senzala, uma experiência fora do manual escolar que eu devo ao Francisco Iglesias. Mas isso não é o que nós estávamos discutindo, estávamos falando da questão do método. Uma discussão a que essas diferenças de discurso obrigam. Não é xingar. Isso é o que o Maurício faz com o padre Guido Logger. Isso é fácil. Xingar o outro é fácil, difícil é desconstruir o pensamento do outro, obviamente puxando a sardinha para o seu prato. Essas discussões não são brigas. Talvez por sermos mineiros não nos apetece tanto a briga, nós preferimos discutir essas questões de um ponto de vista um pouco mais objetivo. Por que Fritz Teixeira Salles tem tal discurso? Porque ele leu os teóricos marxistas, claro. Vamos a eles, portanto.

Uma história que eu gostaria de contar é que o CEC ficou tão importante que o Partido Comunista detectou que estávamos nos desviando do comunismo e mandou um indivíduo do Rio de Janeiro, que depois se casou com nossa colega de letras Vilma Arêas, para ser presidente do CEC. O nome dele, Fausto Cupertino. Isso vocês podem comprovar com ela, professora de literatura e escritora, hoje na Unicamp. Assim como o Jorge Amado recebeu a função de coletar poemas da nova geração literária de Belo Horizonte, inclusive meus, para a revista Para Todos, que era de nítida inspiração comunista. Uma outra discussão que eu queria levantar é como a juventude acaba atraindo essas figuras, que tomam uma atitude que podemos criticar, mas que é muito bonita, de paternalismo, de ajudar de certa maneira a nova geração dizendo “vocês não estão indo por um bom caminho, mas nós entendemos, e vamos ajudá-los”. O meu poema que eles publicaram não tem nada a ver com a Para Todos. É um dos meus poemas mais mallarmaicos. Mas levaram, publicaram. Havia o suplemento do Jornal do Brasil que tinha o Mário Faustino como árbitro, e, como eu tinha vergonha de ser poeta, assinava Antônio Nogueira, que são os dois nomes que Fernando Pessoa abandonou: Antônio Fernando Nogueira Pessoa. Meu pseudônimo era um heterônimo de Fernando Pessoa. Mas eu mandei e Mário Faustino publicou; só depois é que houve um entendimento de que eu era de Minas, Silviano.

Há um fascínio da juventude muito grande, muito bonito. Isso é para falar de coisas que vão acontecendo porque determinados grupos já estabelecidos começam a querer nos controlar. Esse movimento do Partido Comunista foi bem óbvio. Quem levou o Glauber Rocha a Minas na época foi o Fritz Teixeira de Salles, que conseguiu verba não sei como e pagou a viagem e a estadia em Belo Horizonte ­– uma maneira de levá-lo a Ouro Preto, Congonhas, o barroco mineiro. E o Glauber, se vocês lerem a correspondência dele publicada pela Ivana Bentes, tem umas cartinhas em que descreve a Minas Gerais dos primeiros encontros.

Plateia: Enquanto um método dá sustentação à pessoa, o outro mexe com a cabeça…

SS: O mero fato de lê-lo. Quem lê um outro diferente o faz porque aquilo lhe incomoda. Mas eu não quero entrar na questão da diferença, que é da década de 1970. Havia uma discussão muito personalista naquela época.

Plateia: Você consegue situar o momento em que o jovem crítico de cinema foi capturado pela literatura de vez? Ou desde o começo você vivia com um pé em cada canoa e foi levando até onde deu? Eu gostaria de saber por que o cinema cessou para você como escrita crítica.

SS: Graças ao Jacques. Ele disse “você sabe que cinema só não é suficiente para pensar”.

Plateia: Quando você começou a fazer críticas de cinema com essa idade você tinha a perspectiva de um ofício?

SS: Estamos falando o tempo todo aqui de teoria e crítica. Nenhum de nós fez cinema. Nenhum de nós exceto por José Roberto Duque Novaes, que era o mais bobinho e fez um filmezinho de 2 minutos, no qual era eu o ator. Era um filme impecável porque ele decupou todas as cenas, eu tenho esse script. É um rapazinho que vem caminhando numa estrada com uma sacola, como se fosse um pouco vagabundo, e tem que atravessar uma ponte de ferro de Belo Horizonte. Nesse momento passa um trem e ele tem que se jogar contra a murada da ponte, numa cena com exercícios de close. O trem passa, ele volta a caminhar, e desaparece na direção de Belo Horizonte, caminhando chaplianamente. Foi uma bobagem, mas que mereceu artigos da imprensa dizendo que pela primeira vez alguém tentou pegar uma câmera, porque nós só escrevíamos.

Da mesma forma que o Iglesias me deu o puxão de orelha, o Jacques me deu três livros para ler, que eu não entendi. ABC of reading, de Pound; Páginas de doutrina estética, um livro de ensaios de Fernando Pessoa que não existe mais como tal; e o terceiro, que virou minha tese de doutorado: Os moedeiros falsos, de Gide.

Plateia: A fruição do cinema era muito mais fácil do que a da literatura, então?

SS: Claro. O cinema veio para mim da história em quadrinhos. Eu ia ao cinema todas as noites em Formiga, onde nasci. Era ao lado da minha casa e eu assistia às séries, Nyoka, O terror dos espiões, todas as de 1942. O terror dos espiões era maravilhosa, vocês podem ver no YouTube. Nyoka era uma espécie de Tarzan mulher. Depois eu me mudei para Belo Horizonte, onde meu irmão mais velho, que sabia que eu gostava de cinema, tinha ido estudar no colégio Lafaiete, no Rio de Janeiro. O Instituto tinha um ensino muito sofisticado para época, em 1948, administrado pelo doutor Lafaiete, pai de dona Dirce Côrtes Riedel. Meu irmão – que leu literatura, viu cinema, entrou para o clube da lanterna do Carlos Lacerda, tudo que vocês podem imaginar – me disse: “você que gosta de cinema, aqui tem um clube de cinema, sabia?”. Ele me levou ao clube de cinema quando eu tinha 14, 15 anos; eu não conhecia ninguém, é claro, e me aproximei do Maurício Gomes Leite, que tinha mais ou menos a minha idade. Pouco a pouco fui me aproximando dos outros e aí já comecei a ler teoria cinematográfica. Um húngaro, se não me engano Béla Balázs; O ator no cinema, de Pudovkin; a bibliografia que havia naquela época, em geral publicada com boas traduções pela Casa do Estudante do Brasil. Depois eu comecei a ler em francês e o repertório aumentou muito. Eu entrei para a Aliança Francesa, comecei a ler literatura francesa e foi dessa maneira que cheguei a Bazin e a Cahiers du Cinema. Tudo isso em Belo Horizonte, de onde eu só saí em 1960. Assim eu fui me tornando mais e mais leitor de literatura (e li aquelas coisas básicas, Flaubert, Baudelaire, Sartre…). Até os 13 anos eu não tinha lido nada de literatura. Comecei a ler Machado de Assis, José de Alencar, Dostoiévski, tudo misturado, fora o fato de que, e essa é a confissão final porque eu já estou exausto, eu era caixeiro na loja do meu pai. Meu pai era pai-patrão. Eu trabalhei como caixeiro, menino de entregas, desde os 12 até os 21 anos de idade. Também não é à toa que eu consigo escrever sobre Belo Horizonte, que eu conheço na palma da mão porque tive que fazer as entregas de produtos da loja nos consultórios dentários…

Plateia: Na última Suplemento Pernambuco você escreve sobre cinema, um livro da Estefânia…

SS: Mas eu nunca abandonei o cinema, é uma loucura minha. Como eu disse, qualquer leitura um pouco mais formal de qualquer texto meu verá que existe uma decupagem ali muito nítida. Acho que é uma das graças das coisas que eu escrevo. Nisso o Henry James é muito importante para mim, na questão do ponto de vista.

Plateia: Stella [Manhattan] tem muitos planos, não?

SS: Stella é escarrado Hitchcock – A janela indiscreta: o professor se masturbando lá em cima e vendo a mulher. Mas no Em liberdade, por exemplo, que é um livro mais sofisticado, tem uma questão do ponto de vista que é a questão da câmera. E era uma coisa que nos importava, porque havia um filme na época, que era uma porcaria mas seduzia todo mundo, narrado pela câmera, A dama do lago (The lady of the lake), do Robert Montgomery, o ator. Festim diabólico (Rope), do Hitchcock, tem brincadeiras formais divertidas, como aquela cena famosa dele olhando a bola de tênis da arquibancada. Eu tenho um livro chamado De cócoras, em que no final o sujeito está morrendo e aparece um anjo. Então é tudo visto num plongée/contra-plongée, de cima para baixo, de baixo para cima etc. São coisas arranjadas, porque o superior também é um pouco divino, que eu faço com certa graça, fico rindo de mim mesmo assim como a gente brinca com câmera.

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[1] Trata-se do livro Revista de Cinema – Antologia (1954-1957 / 1961-1964), organizado por Marcelo Miranda e Rafael Ciccarini, Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2014. A pedido do Silviano, o Marcelo entrevistou um dos fundadores da revista, Guy de Almeida. V. texto que se segue ao depoimento. [N.E.]

[2] Não é por casualidade que Almodóvar chega ao final de sua carreira com a encenação de A voz humana, peça que já tinha sido citada por ele em filme bem anterior. [N.E.].

 

II

Marcelo Miranda: Como surgiu a ideia da revista?

Guy de Almeida[1]: Eu tinha 20 ou 21 anos na época. O pivô dessa história para mim, e acredito que seja de uma forma geral, foi o Cyro. Foi ele que teve a ideia e que convidou a mim, Jacques do Prado Brandão e José Roberto Duque de Novaes (que foi embora cedo para o Rio) para participar da criação da revista. Foi o Cyro que mobilizou, com entusiasmo muito grande. Era ele inclusive quem arrumava aquelas publicidades que apareciam na revista. A alma da revista, na realidade, foi o Cyro. Foi ele quem realmente criou e coordenou a edição da revista, nós ajudávamos no possível. Eu já estava em transição, saindo da crônica e da crítica de cinema para economia e política, sempre gostei muito de jornalismo.

Tive dois convites do Cyro naquela ocasião. Um foi para a Revista de Cinema e outro, depois, quando ele assumiu a direção do Diário da Tarde. Eu já tinha levantado vôo na política e na economia, trabalhando no jornal católico O Diário. Ele me convidou e assumi a função de editor de política quando ele era chefe de redação do jornal.

MM: Na época da fundação da revista, como se deu o convite do Cyro?

GA: Naquele momento não havia apenas a Revista de Cinema. Antes já havia o CEC, que realmente tinha uma atuação muito forte em relação ao cinema. Hoje com várias atividades que ocupam o espaço que naquela época era todo praticamente do cinema. Havia filas imensas nos cinemas em BH, como no Metrópole, Brasília, Glória, Avenida… Era uma geração, a nossa, muito imbuída da influência da literatura e do cinema. Nós tínhamos o hábito de ir à Camponesa, uma cafeteria na rua Goitacazes, pouco abaixo da redação de O Diário, entre Bahia e Espírito Santo. A gente se encontrava para falar de cinema, literatura etc.

A revista surge em função do interesse que havia pelo cinema e por seu papel naquele momento, com filmes impregnados de motivações sociais. O neorrealismo italiano teve uma presença muito forte em todos nós. E nos filmes encontrávamos grandes motivações às nossas conversas e formas de encarar as mudanças que surgiam no mundo. A revista surge como uma resposta a todo esse contexto.

MM: A revista chamou atenção logo de cara?

GA: Houve um interesse muito grande pela revista. Na realidade, do setor intelectual, e é possível notar até pelos colaboradores da revista, gente que normalmente não teve presença tão forte e profunda na produção de textos de cinema, só colaborou. Alguns tinham o cinema ao lado da literatura, como Jacques do Prado Brandão e Fritz Teixeira de Salles.

O CEC foi estimulado a participar da revista. Éramos os quatro fundadores, e tínhamos o Cyro que nos mobilizava – ele que editava tudo a partir dos artigos que recebia. E eu às vezes fazia traduções de artigos e escrevia algumas coisas. Nós nos encontrávamos sempre para discutir como fazer a revista. Podíamos conversar sobre cinema em várias circunstâncias e não tínhamos um ritual firme de encontros.

MM: Demorou entre a ideia e a primeira edição?

GA: Não me lembro bem disso. Não foi rápido, mas não demorou. Com a ideia da revista formulada e o grupo que trabalharia já definido, começaram os convites para colaborações e as seleções de artigos estrangeiros (assinávamos revistas como Cinema Nuovo e Sight and Sound). Havia uma concentração muito grande pelo cinema num nível intelectual. As reuniões do CEC, as sessões que fazíamos, eram muito interessantes, e depois delas debatíamos sobre aquilo tudo. E todos os jornais davam bastante espaço ao cinema. O Cyro tinha uma coluna no Estado de Minas, eu tinha no O Diário, o Jacques chegou a escrever, o Zé Roberto não tanto, mas estava presente.

MM: E financiamento?

GA: Era através dos anúncios de que o Cyro corria atrás. Pode ser que o Cyro tenha colocado dinheiro, mas o que ajudou a fazer a revista foram mesmo os anúncios. Não me lembro disso direito.

MM: Como se deu a montagem do visual da revista?

GA: Nós mesmos que diagramávamos, sempre com a coordenação do Cyro. Olhando a revista hoje, percebe-se que ela é meio primária, mas na época não era. Primeiro pelo fato de ser uma revista especializada em cinema – não no cinema no sentido da promoção publicitária, mas como atividade intelectual. Respondíamos a curiosidades e inquietações sobre o que o cinema representava naquele período, o cinema como instrumento para a realidade política e social. E depois porque os textos de cinema nos jornais eram mais informativos, sem aquela reflexão toda que colocamos na revista.

MM: Como era a definição das pautas?

GA: Havia sugestões, não apenas do que nós poderíamos produzir, mas também outras pessoas que seriam convidadas. E tinha interesse de pessoas que queriam colaborar, e nós pedíamos para enviar seus artigos. Feita a verificação da qualidade, era publicado. Nesse ponto, a revista, de certa maneira, desenvolveu um papel histórico, pela qualidade da produção que ela publicava, que era também inédita. Se olhamos a crítica de cinema daquela época nos jornais de BH, os textos eram um pouco mais curtos, mais de informação para o leitor.

MM: E a periodicidade?

GA: A periodicidade não era rigorosa, não tinha uma data certa para sair. Na fase inicial, saía com frequência, não sou capaz de dizer se era mensal, mas não ficava tanto tempo sem sair uma edição, pelo menos até a edição 23, quando saí da revista. O Cyro assumiu a chefia de redação do Diário da Tarde, algo que o absorvia muito, e todos foram assumindo várias atividades. A revista é interrompida em 1958 e volta depois, na segunda fase, da qual não participei.[2] A revista nunca parou mesmo, ela simplesmente deixou de sair. Eu me afastei porque fui completamente consumido pela atividade jornalística.

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[1] Depoimento concedido em conversa com Marcelo Miranda realizada em Belo Horizonte, no dia 14 de julho de 2011.

[2] Os últimos números da revista foram dirigidos pelo crítico José Haroldo Pereira. [N.E.]

 

III

Salaud Mauricet

Com a pena divertida e vívida da amizade e admiração, Sérgio Augusto evocou no segundo número desta revista a figura de João Maurício Gomes Leite. O título dado ao artigo, “Maurice”, é alusão ao apelido que recebeu no Rio de Janeiro. Maurício é a mais completa vocação cinematográfica que Belo Horizonte conheceu na segunda metade do século 20. Pertenceu nos anos 1950 ao grupo Complemento e, como benjamim, fez parte da equipe da Revista de Cinema, destacando-se posteriormente como crítico diário nos jornais Diário da Tarde e O Estado de Minas. À época do golpe militar, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde sua escrita tornou-se hóspede de O Correio da Manhã. Dirigiu dois filmes. Um documentário, O velho e o novo, e um longa-metragem, A vida provisória. Desiludido com a carreira promissora, recém-casado e endividado até a alma, auto-exilou-se em Paris e conseguiu trabalho na Unesco. Naquela cidade, veio a falecer há dez anos. Tudo isso, e muito mais, lá está na sentida evocação de Sérgio Augusto.

O afrancesado Maurice já o era desde Belo Horizonte. Uma pesquisa arqueológica na crônica provinciana indicaria que o apelido carioca já o vinha acompanhando desde o dia em que assistimos maravilhados a Les quatre-cents coups, obra-prima de François Truffaut. Em certo momento do filme, o protagonista vira-se para um coleguinha e o chama de “salaud Mauricet”. À saída do cinema, não havia como não chamar Maurício de “salaud Mauricet”. É preciso contextualizar a mineiríssima maldade – ou a perversidade, se pensarmos no correspondente e menos equivocado conceito surrealista. A perversidade no trato entre amigos cheirava a linguagem de grupo fechado de jovens rebeldes, que reproduzia em miniatura a reação agressiva da comunidade bem-pensante. Queríamos experimentar algo das emoções vividas pelos “enfants terribles”, de Jean Cocteau, ainda que fossem sentimentos inventados imaginariamente e postiços.

No meu caso, e só do meu caso falo, o salaud Mauricet logo deu o troco. Passou a chamar-me de Sissy, em mais do que óbvia alusão às duas primeiras letras do meu nome e em menos óbvia referência à imperatriz brega-chique interpretada pela ravissante Romy Schneider. As alusões não paravam aí. Qualquer um que maneje a gíria norte-americana não teria dificuldade em traduzir o apelido por maricas, para não usar palavra mais grosseira, que talvez esta publicação não comporte. O britânico – pois ele também o foi, logo depois de a família ter-se transferido de Montes Claros para BH e ele ter-se inscrito como aluno na Cultura Inglesa e se apresentar com a revista Sight and Sound debaixo do braço – o britânico Maurício era mais oswaldiano do que a crônica cinematográfica carioca nos faz crer.

Aparentemente movido pela razão, na verdade o era sempre pela paixão, como os personagens interpretados por Humphrey Bogart, ator que ele passou a admirar desde Acossado, de Godard. Nos últimos anos parisienses apresentava-se sempre com capa de chuva cinza, afivelada, marca registrada do ator e de Albert Camus. Fisicamente era a cara do Nobel Soltchenitzin. A escolha do austríaco Otto Maria Carpeaux para interpretar o principal papel de O velho e o novo – e representar metaforicamente os jornalistas e intelectuais que combatiam o golpe militar no calor da hora – foi também motivada pela paixão. Uma antiga e dolorida paixão por Viena e suas belas e enigmáticas mulheres, que lhe foi despertada pelo filme O terceiro homem, de Carol Reed, baseado no conto homônimo de Graham Greene.

Para os que nasceram em meados dos anos 1930 e cresceram durante a guerra numa província ultramarina, o batismo de fogo ideológico não se deu, é claro, com os vitoriosos filmes norte-americanos sobre o conflito bélico, nem mesmo com os partiggiani de Paisá, ou com os doloridos párias de Roma, cidade aberta. Deu-se, antes, com o menino perdido de Alemanha, ano zero e com o pai desempregado de Ladrões de bicicleta. As chagas-vivas da destruição. E deu-se de maneira definitiva na descrição da cidade de Viena por Carol Reed. Uma cidade dilacerada pelas forças militares de ocupação, redimida pela beleza de Alida Valli e acentuada pelo cinismo arrogante e boquirroto de Orson Welles (sem esquecer que do esquema também fazia parte a ingenuidade detetivesca do norte-americano Joseph Cotten, protótipo do “americano tranquilo” no Vietnã).

Inesquecível a cena em que Orson Welles refugia-se no cacoete de levantar as sobrancelhas para enunciar a única contribuição da ordeira e pacífica cultura suíça à humanidade – a invenção do relógio cuco. Quantas vezes não repetimos a sua fala. Existe filme mais atual do que O terceiro homem? Quem imaginaria que, década depois, os corruptos do mundo se uniriam para transformar a Suíça no maior banco da face da terra e que a dilacerada Viena seria pinto diante do que as bombas de napalm fizeram no Vietnã e os invasores fazem em Ramalah ou Bagdá.

Sabe-se que, logo depois, Maurício viajou à Europa (sua primeira incursão pelo estrangeiro) e passou por Viena, onde conheceu uma linda jovem de 16 anos, por quem se apaixonou. A viagem é até hoje cercada de mistério e o encontro dos dois teria se dado numa loja de discos e se prolongado num café, entremeando colheradas de torta com goles de café vienense. Ou se prolongado, ao som da música de Anton Karas, pelas ruelas noturnas de Grinzig, bairro boêmio correspondente ao Montmartre parisiense, onde o personagem de Orson Welles tinha armado a sede do mercado negro da penicilina. Sei que, logo ao regressar, Maurício fechou a boca dos incrédulos. De carne e osso, a vienense punha os pés em Belo Horizonte. A mãe de Maurício, dona Aninha, senhora educada pelo sertão montes-clarense, não gostou da ideia de a ninfeta (a palavra então se impunha nas nossas conversas) vir hospedar-se na sua casa. Exigiu que filho e noiva habitassem quartos separados até o dia do casamento. A exigência foi cumprida, embora a união tenha durado pouco tempo, em virtude da pirataria de um jovem audaz do trapézio volante, nascido na Bahia.

Não repetirei a experiência carioca de Maurício, tão bem narrada por Sérgio Augusto. Surpreendo-o de volta em 1969, num momento em que me senti um traidor digno das páginas admiráveis do argentino Borges sobre o assunto. Para mim que, no campo das artes, fui sempre um cobrador de escanteio, que gosta de levantar a bola para os mais bem dotados cabecearem e marcarem gol, a pior traição a mim mesmo é a de não poder gostar da obra feita por um amigo. Quando Maurício me mostrou A vida provisória numa cabine da rua senador Vergueiro, comigo me desavim e fui posto em perigo, como rezam os versos de Sá de Miranda. Tinha visto na mesma ocasião Jardim de guerra, filme do também amigo Neville de Almeida, e tinha saído da sala de projeção disposto a bater córner para ele e o Jorge Mautner, autor do roteiro.

Eu morava então na região de Nova York, tinha convivido passageiramente com os irmãos Campos e me aproximado de Hélio Oiticica, e o filme do Maurício me pareceu quadrado (no bom e no mau sentido da palavra). O de Neville era um grito de louvor à vida nos seus aspectos mais trágicos e o do Maurício, no econômico relato tragicômico e autobiográfico, tinha algo de “déjà vu”, que me esfriava. Estava equivocado? Não sei. Sei que o apelido que ele tinha me dado perdeu a auréola do carinho e me caiu pesado, como uma carapuça.

A tradução da obra-prima de Malcolm Lowry, Under the Volcano, que fazia com Ângela Loureiro de Souza, nos reaproximou. (Ângela é quem nessa época apresentou ao Maurício a jovem poeta Lucia May, que viria a ser a segunda esposa e mãe da única filha.) Era Lowry no céu e Deus na terra, e com ele concordava John Houston, que veio a filmar o romance. Tinha conhecido em Paris a tradutora de Lowry para o francês, Clarisse Francillon, e Maurício ficou encantado com as histórias que lhe contava, produto das minhas conversas com Clarisse no seu apê que dava de frente para o parque de Montsouris. Mal podia adivinhar que meses depois ele estaria se auto-exilando na França. Numa melhor situação financeira e, por afinidade matrimonial, próximo do grupo político que inventava a abertura, Maurício pôde reencontrar os artistas e intelectuais amigos, que tinham se exilado na Europa. Ele me contou (e não há motivo para duvidar do seu relato) que foi por instância dele junto ao então sogro e chanceler brasileiro que fora concedido a Glauber Rocha o salvo-conduto, que permitiu o retorno do cineasta ao Brasil.

Uma das páginas mais fascinantes e mais desconhecidas da sua vida é a da sua inserção na Unesco, numa seção cuja finalidade era a de debater o estatuto da imprensa no mundo tomado, de um lado, pela guerra fria e, do outro, pelo anticolonialismo. Começava-se a viver a americanização do planeta, que acabou redundando no que passou a se chamar, depois da queda do muro de Berlim, de globalização, e alguns funcionários da Unesco se revoltavam contra o modo pelo qual as notícias (em particular as de caráter econômico e político) eram veiculadas e difundidas pelo mundo inteiro através de poucas agências, todas com forte ascendência norte-americana ou com parti-pris ocidental. Existe questão mais atual, depois que a televisão a cabo propiciou a entrada da CNN lares adentro? Sei que estou simplificando e mais simplificarei a seguir, pois pretendo resumir algo que não caberia em vários tratados. O resumo tem a desvantagem de falsear a verdade e a vantagem de mostrá-la de maneira nua e crua.

Foi o grupo de que Maurício participava que levou a cabo o questionamento da ideologia neocolonialista e injusta da Unesco, buscando imprimir junto à cúpula decisória uma decidida atitude equânime em relação às várias e diferentes regiões do planeta. Esse movimento, por assim dizer ecumênico, foi responsável por pelo menos duas mudanças corajosas e altamente polêmicas naquele órgão internacional. A eleição de um africano negro para a presidência e a consequente insatisfação da delegação dos Estados Unidos, que se manifestou pela retirada da contribuição financeira.

Foram anos difíceis e inesquecíveis para a conturbada e meio que secreta história da Unesco, anos que, vistos da perspectiva de hoje, talvez sejam os últimos remanescentes da ideologia terceiro-mundista em órgão internacional. A retirada da colaboração financeira pelos norte-americanos, me disse o Maurício, não foi o que motivou a queda do grupo liderado pelos africanos, sucedido por diretoria de teor nitidamente pró-americano. A queda do grupo foi motivada pelo fato de que a Unesco, para a boa realização da sua política humanitária, precisa de uma quantidade extraordinária de especialistas nas várias áreas do conhecimento, de preferência com PhD. O único país que tem superávit de doutores e pode exportá-los às pencas são os Estados Unidos. A falência, apregoada como financeira, foi na verdade cultural e humanitária.

Este alinhavo à evocação de Sérgio Augusto vem a propósito de uma constatação que ele faz ao final. João Mauricio – escreve ele corretamente – não deixou livro nem coletânea de escritos. Estão espalhados e/ou perdidos pelas folhas diárias e algumas revistas. Há dois anos alguns amigos de Maurício, não sei se os principais ou se os melhores, resolveram pôr fim a esse estado de coisas. José Haroldo Pereira retirou uma caixa de sapatos dos seus guardados. Continha uma suculenta coleção de críticas diárias escritas pelo nosso homenageado. Passou os recortes a Wander Melo Miranda, diretor da Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, que mandou fazer duas cópias do material. Uma foi depositada no Acervo de Escritores Mineiros, daquela universidade, e a outra entregue ao jovem professor Jair Tadeu da Fonseca, que está sendo responsável pela seleção e digitalização das críticas e ensaios e será o autor do prefácio da coletânea de escritos.

Não há por que não aguardar a publicação para se conhecer a contribuição do salaud Mauricet ao pensamento cinematográfico no Brasil, contribuição que encontrará o merecido lugar ao lado das já consagradas obras do decano Paulo Emílio Salles Gomes e do contemporâneo Jean-Claude Bernardet.

Uma literatura nos trópicos 40 anos

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Schneider Carppegiani
Cepe Editora

Uma literatura nos trópicos 40 anos : dependência cultural e cosmopolitismo do pobre

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Genealogia da Ferocidade

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3x Minas Mundo: escritas de si no memorialismo modernista mineiro

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Este registro de pesquisa, publicado no v. 10.2 da revista Sociologia&Antropologia, busca circunscrever de um ponto de vista sociológico o entrelaçamento entre subjetividade individual e cosmopolitismo na cultura brasileira no e a partir do memorialismo de Pedro Nava. Duas experiências de pesquisa o informam. No ponto de partida original, múltiplas atividades minhas em torno de Nava nos últimos dez anos: como pesquisador, professor em sala de aula, orientador de tese e organizador da reedição da sua obra. Na outra extremidade, que, no entanto, não é apenas um ponto de chegada, mas também um novo ponto de partida, essas experiências são em parte reorientadas com vistas ao projeto coletivo “Minas mundo: o cosmopolitismo na cultura brasileira” que estamos iniciando numa grande rede de pesquisa e cooperação interdisciplinar, nacional e internacional. Clique aqui para ler.

Pedro Nava, datiloscrito com desenho, s.d. Pasta Balão cativo. Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa/Arquivo Museu de Literatura Brasileira